terça-feira, 17 de agosto de 2010

segunda vida

"Sinto algo semelhante a ter perdido peso durante a noite e, ao mesmo tempo, como se tivesse aumentado discretamente a minha euforia, só por dormir e sonhar. Belo despertar o deste primeiro dia de Março, aniversário do meu pai. Reaparecimento do optimismo intermitente. O dia está carregado de encontros. Primeiro, com o meu pai e a minha mãe. Depois, com alguns amigos. Tenho chegado sempre atrasado a tudo. Digo-o porque só há muito pouco aprendi, finalmente, a valorizar na sua justa - grandiosa - medida a sorte imensa, o luxo vital, que representa a existência de uns contados, muito escolhidos íntimos; ter conservado no tempo um círculo privilegiado de entes queridos. Melhor do que qualquer livro, a conversa com os pais, com a amiga e o amigo. Pensar que ainda aí estão e que é tudo terrivelmente vulnerável e é conveniente estar alerta. Os amigos são uma segunda existência.
É esse o estado das coisas quando ao meio-dia dou uma volta pelo bairro antes de comparecer aos encontros. Nunca me tinha deparado com um dia com tantas e tão altas perspectivas. E, enquanto passeio, deslumbra-me, e até chega a magoar-me, um furtivo lampejo de sol, demasiado perfeito. Cumprimento-o como se também fosse um amigo. Ou uma mãe. Ou uma segunda vida."

Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel, Lisboa, Teorema, trad. Jorge Fallorca, 2010: 107.

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