sexta-feira, 9 de julho de 2010

três poemas de António Franco Alexandre

7

não regresses a mim. não me procures. leva-me
ao campo aberto onde começa o escuro
passado dos sentidos,
às manhãs de ocidente, no planalto
que fica ali ao fundo da avenida
e nada nos recorda,

onde o futuro aéreo se mistura
ao corpo repetido.
detesto estes empregos, as mãos dos arquitectos
o plano quinquenal de mais progresso,
os vestígios de chuva brasileira
na gaveta do fundo, a mais esquiva,

a adição do cálculo subtraída.
despede-me de mim. deixa-me olhar
o leque de água, o fogo frio, a lama;
um só instante. agora
deixa-me cego e só traçar o risco
onde a luz se desfaz e se repete.


14

a arte do retrato, a natureza das palavras
o corpo, que as ficções habitam
como um recinto mal iluminado, aberto
sobre a noite de luzes rectilíneas, longe,
descrevendo o silêncio e, dentro do silêncio,
a sem-memória súbita de nunca;

o sentimento penetrável, embrulhado
em algumas imagens, receio, sempre as mesmas,
uma estrada, uma estrela, as arestas do frio,
a vulgar aventura de uma esquina, quando
o infinito pudor os descobre, despidos
de qualquer comoção ou despedida,

minuciosos são os mapas, terras
onde jamais viajas, entregue a essas
razões inúteis que te deste,
a gelatina branca das palavras, o retrato
mal concebido de um ser extraterrestre,
a brandura de nada ter sentido.


10

apenas um instante e as coisas mudam-se
umas nas outras enlaçadas,
então ocorre perguntar: porque não começa
a vida? noite após noite, os vastos
entrepostos alcatroados permanecem vazios,
e é possível, de longe, avistar as fogueiras
que a chuva ateia, e debaixo do lodo os corpos
abandonados pela guerra.

o universo, dirás, expande-se
e contrai... mas entretanto
já a folha corrói o desejado,
e a doença do verme anima o verso.
como esperar? são pálidas as bocas
a vídeo no vinil e na placenta,
e se perdeu a vaga parecença
da paisagem.

vamos por aí fora, ao deus dará, vertidos
em rima tosca,
serão sempre horas de partir, de beijar,
de voltar a casa para um jantar de madrugada,
de ir ao cinema pra esquecer, de ficar
solto numa esquina, esquecido,
depois basta deitar fora toda a água parada
e será verão.

in, As Moradas, 1&2, Assírio & Alvim, col. cadernos peninsulares, literatura, 1987: 15, 22 e 42.

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