quarta-feira, 14 de julho de 2010

ordenação do mundo

há uns anos, eu e o rui, no meio de copos no oficina, decidimos que iríamos ordenar o mundo. cada um à sua maneira sentia que o mundo estava aos avessos, logo precisava que se tirasse a roupa ao mundo, a sacudisse bem e a voltasse a vestir, agora decentemente. para isso - na altura parecia-nos uma tarefa mais fácil, depois de alguns whisky - bastava-nos declarar, cada um pelo seu lado, o melhor ou o pior de uma certa coisa, limitando-a a quatro folhas A5. numa semana um escrevia o melhor e o outro o pior, depois trocava-se. durante algum tempo estávamos a conseguir, sentíamos que estávamos a fazer qualquer coisa que valia a pena. só que, como uma paixão de verão, o ímpeto de mudança, de aventura foi esmorecendo. pelo meu lado, guardo, como se tivesse sido eu a paixão, a memória e os meus textos. segue aqui,


o melhor princípio


Do princípio o que há a dizer senão vindo da memória? Se é de um princípio que falamos, um desses que começa qualquer coisa que logo indica um fim que se espera e desejamos que nunca nos visite, que nunca chegue, que fingimos ignorar a sua promessa de princípio: se partes irás acabar – por tua mão – ou alguém terminará por ti, ponto final parágrafo. Comecemos então.
Mas afinal o que quero dizer com vindo da memória? Steiner abre as Gramáticas da Criação dizendo que já não existem princípios, isto é, já ninguém cria. Eu digo que ou nunca existiram (pelo menos para o homem, porque aí estamos a falar do que aconteceu antes dele, apontando, acredite-se ou não, para qualquer deus) ou estão sempre a sucederem-se dando-nos ou não conta disso (agora só do homem, tanto artística quanto cientifica-mente, com teorias e obras, aos saltos). De que princípio posso eu falar? O meu? O teu? O do meu estatuto de homo erectus antes de ser homo sapiens? Porque na verdade me parece que primeiro comecei a andar antes de conjugar coisas, quase como se fosse principal mover-nos para acumular sapiência, levantar a cabeça, olhar para um lado e para outro. Antes de dizer, aquilo que nunca posso, este foi o meu primeiro passo, pus-me de pé e disse este foi o meu primeiro passo? É que, esse passo, o primeiro que demos, que dei, não tenho eu lembrança, contaram-me como foi, alguém tem e tinha a memória dele por mim e me ofereceu. Digo, portanto, que os nossos princípios pertencem a outros, são dádivas, ofertas.
Não sei qual foi o profeta, poeta ou o escriba que assentou em tábuas, ou em papiro, “No princípio era o Verbo” (andou de boca em boca tanto tempo). Mas qual deles deu o início ao princípio? O que escreveu, o que deu a liberdade à palavra através da escrita publicada, o que falou? Todavia, aquele que falou fê-lo de memória, construiu de memória o princípio: era; e lembra-se: é verdade, embora eu veja um fim, antes disso houve alguma coisa – imperfeita, como sugere o tempo verbal. E contudo indica já um início de uma nova ordem das coisas.
Do que te quero falar é desse tempo lacunar, imperfeito. Só posso falar de um princípio a partir do meio dele mesmo, a maior parte das vezes nem sequer dando conta que já se iniciou, sequer se estou a meio ou já no fim. “ (…) nel mezzo del cammin di nostra vita”, percebes? Só posso começar do meio, melhor dizendo, só posso começar de onde nunca houve princípio, exactamente, de um lugar qualquer em que estou parado e vejo em todas as direcções, não estando mais em movimento dizendo “No princípio era o Movimento, o Verbo”. O princípio implica um movimento: corte, salto, queda.
Ainda há pouco deparei-me com este verso de Ruy Belo: “recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive”; e o que leio vai ao encontro do que te tenho dito. Há um movimento, aqui brusco – recuo de repente –, e uma lembrança de certo modo imperfeita e não muito clara porque não é minha, veio de outra boca – aquele princípio que em tua boca tive. Há assim como que um desejo ao lado da promessa indesejada, a do fim, quero voltar porque já se perdeu, já morreu qualquer coisa que veio de ti, foi teu e depois meu e já não tenho. Desejo de ordenação, de compreensão do relato que nos contam. Até mesmo o princípio que se dá com ou como a destruição, parecendo caótico, é igualmente promessa e desejo de ordem.
Não se principia, recomeça-se. Esclarecer uma ideia, uma palavra, se quiseres, qualquer coisa, é pedir que se volte ao princípio, é procurar um princípio que nunca houve, constrói-se. E se houve esquivou-se de ser visto, perdeu-se pelo caminho, razão pela qual se quer esclarecer a meio do percurso. Mal se começa não se acaba, perde-se, depois ou seguimos em frente ou se volta atrás, todavia nunca ao princípio mas sempre a outra coisa.
Agora se me perguntares, que é afinal o que nos levou a isto, qual o melhor princípio? dir-te-ei que é este, o de mútuo acordo, assumindo uma tarefa de ordenação do mundo, o meu, o teu, ou o que está para além de nós fazendo a vez de deus.
O melhor princípio é o encontro de vontades, colar as asas e voar até ao sol com o risco de nos queimarmos (fazendo a vez de Ícaro), roubar o fogo com o risco de nos darem de comer a uma águia (fazendo a vez de Prometeu), ver o nosso amor tomar banho correndo o risco dela nos matar com as setas do seu olhar (fazendo a vez de Actéon).
O melhor princípio é o acto de assumir, que erramos, que falhamos, que vamos morrer. O melhor princípio é perceber que se podemos dizer o melhor é dizê- lo.
O melhor princípio não é a hipótese, é a certeza, só que uma certeza que se afirma de duas formas: ou estou certo ou estou errado, nunca em dúvida. “Não sei por onde vou, sei que não vou por aí” é por esta razão um mau princípio, mesmo que seja o fim de um poema. Não se vai contra nem se avança por um princípio de dúvida, mas com uma certeza de que estou certo ou estou errado, ou que aquilo está certo ou está errado, pondo em risco apenas a minha pessoa, ou de mútuo acordo as duas que iniciam uma aventura. Com a hipótese ou a dúvida não se principia, recomeça-se. Claro que podes dizer: o que estás a fazer é colocar uma hipótese do que é o princípio, ou a esclarecer a tua dúvida do que é o princípio. Muito bem, posso concordar, só que não é isso que estou a fazer, não é isso que estou a falar, estou certo disso e posso estar errado. Estamos, portanto, em frente de um precipício, quero dizer, de um princípio: encontro, assunção, movimento, risco.
O melhor princípio é a abertura de um jogo de xadrez, está lá tudo: encontro, assumir de risco, desejo, promessa, movimento, corte, salto, queda, ordenação. Enfim, é começar.


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