sábado, 3 de julho de 2010

Fiama Hasse Pais Brandão



Título: Sob o olhar de Medeia
Editora: Relógio d'Água


Como falar da infância? De que modo, passados largos anos, entregues ao mundo, qualquer coisa que se esconde de nós, como certas paredes pelo mundo das plantas, das heras, volta? Como essas memórias enterradas voltam pela mão e da mão ao papel? Podemos perceber o movimento, o longo mergulho de escafandro ao rio Letes e de lá trazer envolto na mão o polvo da nossa infância, com os seus tentáculos enrolando-se pelo corpo, deixando as marcas das ventosas. As memórias, talvez, não sejam mais do que isso, marcas, traços, rastos que precisam de ser retomados, decalcados, traduzidos; certos rostos, cores, gestos, cheiros, a luz diurna passada pela janela empoada deixando um lastro brilhando na escuridão do nosso quarto, uma flor, um livro, a morte de um familiar querido sentido como a primeira falha da maravilha do mundo – nenhuma criança autorizaria a partida de um ser amado, a morte não tem qualquer direito nesse mundo. Uma vez na vida, talvez desiludidos, talvez não, somente entediados, desprevenidos, tudo vem, tudo volta no ritmo de cada um. Aí, nesse momento, agarremos a vida que foi e olhemo-la olhos nos olhos: o que de semelhante há entre os dois rostos, os dois olhos; oiçamo-la, haverá a mesma alegria na voz, poder-se-á ainda cantar a uma só voz? Ou ter-nos-emos perdido; e se assim fôr, podemos ainda recuperar qualquer coisa disso que nos parece impossível de recuperar? Conseguiremos distanciar-nos o suficiente para admirar o que já percorremos e ler, aí, nesses passos, sim, foi um bom caminho e onde estamos não poderia ser de outro modo?
“Sob o olhar de Medeia”, romance de estreia de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), após uma obra imensa de poesia afirmando-se como uma das mais importantes vozes poéticas portuguesas da segunda metade do século vinte – sem esquecer o seu trabalho de teatro, ensaio e tradução –, poderá ser lido, guardando as suas devidas distâncias, como um romance de aprendizagem, filiando-se nessa linha romanesca que vem do “Lazarilho de Tormes” (dando origem aos romances picarescos), passando pelo “Wilhelm Meister” de Goethe e o “Jovem Törless” de Musil. Mas, como disse, guarde-se as distâncias, tal como nesses três exemplos citados se devem guardar – afinal, o que é isso de romance de aprendizagem? Comecemos de outro modo: do que nos fala Fiama?
Resumidamente, o romance conta-nos a história de Marta, a sua infância, adolescência e maturidade. Marta é uma criança como todas as crianças deveriam ser, ou talvez como elas são, plenas já de um mundo que irá ser trocado, aos poucos e poucos, pelo mundo exterior, no confronto com ele, numa troca de linguagem, através do forçar de uma sobre a já existente e que não escutamos. Aqui, no romance, a/o linguagem/mundo de Marta é, por inteiro, a/o da Natureza. Marta, muito embora não sendo uma rapariga do campo mas citadina, mantém uma relação única com as coisas da Natureza, os seus ritmos, os animais, as plantas, com um sentido raro que mesmo o Caseiro da quinta onde passa férias – cenário maior do romance, ao lado de um pinhal e de uma praia –, ele próprio grande sábio dessas coisas naturais, há muito perdeu. Tudo tem um significado, um sentido íntimo, inatendido, perdido, ao qual Marta acede como uma criança natural e não ainda aculturada. Todavia, como todas as crianças, Marta vai à escola, mergulha no mundo humano, por assim dizer; e mergulha de um modo peculiar. Um professor, tratado como o Leitor, lê à sua turma os clássicos gregos, primeiro a “Odisseia” e depois os “Argonautas”. Assim, o mundo natural de Marta simbolicamente se associa, ou adere ao clássico mitológico, esclarecendo ainda mais o sentido do seu mundo interior. E dizemos bem, simbolicamente, no sentido de unificar, ao contrário de diabólico, como aquilo que separa. E é simbolicamente que temos de ler este romance, cada personagem, a Mãe com as suas rendas intermináveis como uma Penélope, o Pai ausente dado a conhecer como a Voz da autoridade, o Caseiro como o mediador de mundos, Lázaro, o filho do Caseiro, autêntico diabrete e émulo de Marta, vindo a morrer de sífilis passado de geração em geração, um jovem indiano chamado Jesus que num acto de sacrifício para salvar um pássaro unifica os jovens, Tiago, colega de Marta, nomeado por ela como o predicador e que se tornará um professor com um imenso pensamento ético, e Maria, amiga de praia de Marta, filha de um salva-vidas. Contudo, Marta apenas se tornará completamente Medeia quando sua Avó e tia passam uma estada com a família na Quinta e ambas lhe contam as histórias bíblicas. Culmina aí o último momento simbólico, a reunião pacífica do pensamento natural e mitológico com o pensamento religioso cristão.
O livro estrutura-se no seu todo num jogo de símbolos, ou melhor, num conjunto de experiências-chave, de elementos e acontecimentos que, quer do lado da mitologia, quer do lado religioso, fundam o fundamento do mundo. Cada capítulo se guia por esse mote: de um lado, a Terra, a Água, o Ar e o Fogo; e do outro lado, a Luz, o Exílio, a Vida, a Saudade e a Morte. Sendo símbolos do mundo, de um e de outro, todos eles se juntam, se unem na construção do mundo de Marta. Mas não se pense que nos encontramos num qualquer tempo mítico ou no fundo da história do homem, não; temporalmente, a história (diz-se agora a estória) inicia-se por volta dos anos quarenta e termina numa altura muito particular, as manifestações estudantis dos anos sessenta.
Ora, conhecendo a biografia desta poetisa, poder-se-ia pensar que Marta é Fiama; e o que se lê é nada menos que uma biografia romanceada, recapitulando as questões que levantei no início. Não descuro a hipótese que muito do que foi escrito possa ser esse encontro de Fiama com a sua infância; aceitamo-la como matriz e não a verdadeira história da criança que foi. Não. Esta é a história de uma rapariga como juntura do melhor de dois mundos habitando a crueldade deste.

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