quinta-feira, 6 de maio de 2010

rosto mãos schiele - tenho andado a trabalhar


tenho andado ausente porque me encontro a trabalhar, ou a trablahar (que é quando se trabalha com gosto, porque se gosta daquilo que se está a fazer).

o primeiro como título o rosto as mãos: deleuze, derrida e schiele. deixo aqui alguns excertos do que andei a fazer:

"Rosto como espaço de exercício de poder e contra-poder, de verdade e mentira. Eis aí a acção da mimésis e da poiésis, confundindo-se uma à outra na configuração de um rosto. Enquanto a mimésis oferece um rosto para o reconhecimento, a poiésis age de modo a libertar as linhas de fuga do rosto, forçando sobre a aparência a verdade latente de cada rosto, oferecendo um rosto a conhecer. Daí que, igualmente, cada rosto se mostra como a encarnação de um Unheimliche. O que há de estranhamente familiar num rosto é a vibração da força poiética procurando irromper a máscara mimética. E onde, de forma exemplar, se descobre ou se dá esse rompimento é na arte[1]."



[1] Quer na arte pictórica, quer na arte física, como em certas danças (Butoh), performances e teatro.

"Cremos que existe uma certa experiência da mão que desconhecemos no animal (o que não quer dizer que não exista; simplesmente – Derrida, no seu volume L’animal que donc je suis, procura ainda pensar a diferença e a relação entre o homem e o animal, de uma forma, que é quase impossível, menos antropocêntrica – não temos ainda acesso ao pensamento animal). A experiência do toque, como ele se reveste de intenção sensível no homem, e a carícia. Se Jean Brun afirma que preender e compreender implicam duas experiências construtoras de uma “Dimensão onde se move toda a existência humana; Dimensão que não representa apenas o quadro espacial [e temporal também, adicionamos] das deslocações possíveis, mas que se desvenda, sobretudo, como o entre-os-dois que toda a consciência do outro implica”[1], pensamos, pela nossa parte, que o toque e a carícia vão bem para além, senão mesmo as verdadeiras construtoras, dessa Dimensão. Arriscamos dizer que o Geschlecht começa, exactamente, pelo toque e pela carícia, como aquilo que indaga o outro na proximidade ínfima, quase até à mistura da carne, no desvanecimento do entre-os-dois. A mão humana guarda ainda a sua animalidade; e com ela, o homem rasga, marca, traça o lugar da sua apresentação, da sua representação. É com a mão que o homem dá o seu rosto, uma vez que este, dando-se, marca a ausência da mão que já não o esconde mas guarda a distância, a mesma que derruba e aproxima o rosto do outro ao nosso."




[1] BRUN, 1991: 13.


"rosto e mãos: breves notas sobre Egon Schiele

Reparemos, por exemplo, no Auto-Retrato Nu de 1910, olhemos para lá do narcisismo que tantas vezes Schiele foi acusado, o que lá está? O que nos diz aquele corpo, aquele rosto, aquelas mãos? O seu corpo, suspenso nesse fundo amarelado, envolto por uma neblina, uma aura branca, vê-se preso, empurrado, por uma qualquer força na qual as mãos se esforçam por impedir a aproximação. O corpo, indefeso na sua nudez, frágil na sua magreza, mostra sinais tensos do esforço, do combate. As mãos param o que vem, aquilo que o corpo parece não suportar no seu esgotamento, os músculos tensos, o rosto em sofrimento. Há uma torção do torso. O homem ainda não virou costas contra o objecto que o empurra, essa posição de último momento, de último recurso que antecede o desfalecimento. Esse corpo, cujas mãos e rosto bem mostram, indicam, para além da angústia, da fragilidade, o desvanecer, o dissipar – talvez essa aura, que rodeia a linha bem definida do corpo, nada mais seja do que o esfumar da força vital – do homem. Aquele rosto, aquelas mãos, pedem o nosso auxílio.

Reinhard Steiner chama-nos a atenção de que, “[D]o ponto de vista formal, a excentricidade dos desenhos assenta no facto de Schiele deslocar os seus corpos em relação ao centro, não os situar a não ser raramente de frente, ou ao meio do quadro”[2]. Estas variações, estas fugas do centro, permitem as ditas poses estranhas e movimentos bizarros, mas quanto às mãos, aos rostos? Serão conduzidos somente pelo descentramento do corpo em relação ao espectador, ou neles, nas mãos e nos rostos, se concentra, afinal, a expressividade? Se, como diz um dos capítulos desse livro de R. Steiner sobre Schiele, o corpo é o suporte da expressividade, será pois o suporte das mãos e do rosto.

De modo a terminar estas breves notas, gostaríamos de chamar, pela nossa parte, a atenção sobre um aspecto que passa por alguns dos desenhos de Schiele de conjunto, que nos parece deveras interessante. Quando os corpos se encontram emparelhados, quer nos desenhos mais eróticos, quer nos de tema amoroso, do casal de apaixonados, dos amantes, há como que um apaziguamento, um ligeiro alívio da emoção. Os corpos não estão inteiramente em paz, é certo, nunca estão, mas desvanecesse-se uma certa rudeza da expressão do rosto, a tensão das mãos denoda-se. Em alguns desenhos desaparecem mesmo as mãos por entre o corpo, como se o toque, a carícia, não no seu próprio corpo mas no do outro, libertasse, como diz Jean Brun, a existência do seu peso.

Duas mãos se repetem, como espelhadas. No famoso Enlace (Par Enlaçado II) de 1917 e no A Morte e a Rapariga de 1915/1916. No primeiro temos um abraço apaixonado entre dois amantes, quase sufocante, os seus corpos nus envolvidos intimamente parecem prolongar a desenvoltura dos lençóis, os seus rostos não precisam de ser vistos, a humanidade está ali vibrante. Mas repare-se na mão esquerda da mulher, no peculiar gesto que ampara o pescoço da figura masculina e repare-se, agora, na figura masculina do segundo quadro, a morte, um homem, amparando agora a cabeça da mulher e na resposta ao abraço feminino desesperado, a mão direita do homem repete o da mulher do Enlace, num outro sentido, de afastamento. Os rostos, Na morte e a Rapariga, são já apresentados, tristes, olhar vazio, acabados. As mãos do homem dão a ver a amplitude da mão, acolhem e apartam, diríamos, como exemplificativos da preensão, compreendem a mulher. Todavia, e esse é o toque que passa para lá da tela até nós, a mulher, naquele elo entre dois dedos, somente aqueles dois dedos prendendo o homem, impedindo-o de partir, acaricia, a carícia.


"




[1] Cit. in MARRUCCHI, 2006: 36.

[2] STEINER, 2001: 34-37.

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