segunda-feira, 10 de maio de 2010

gérard de nerval




foi sobre este senhor e o romantismo que andei agora a trabalhar. já só me falta mais um texto (tem de estar pronto e corrigido dia 18) e...

fica aqui, então, um extracto do trabalho:

Nerval e as Quimeras, ou como agarrar a lagosta sem ser entalado pelas suas pinças

A questão central, quando se trata da obra de Gérard (Labrunie) de Nerval (1808-1855) e em especial As Quimeras, é como abordar, como ler? Deveremos interpretar? E, se sim, com que critérios? Estruturalistas, psicanalíticos, desconstrucionistas/desconstrutivistas, fenomenólogos, simbólicos? Ou não interpretamos de todo e pegamos naquilo que a obra range connosco (Foucault), perceber onde ela funciona connosco e experimentar pôr em texto isso mesmo, ou seja, fazermo-nos máquina desejante, Corpo sem Órgãos (Deleuze)? Os critérios estão à mão, é certo, mas, pelo nosso lado, seguimos o aviso de Blanchot e avançaremos com humildade e cuidado na leitura desses sonetos. Tentaremos, se em nós tal existir, tirar fruto das condições ou qualidades necessárias indicadas por Pessoa para, mais do que ler o símbolo, ler.

O que são As Quimeras? Escritas no momento seguinte à grande quebra de consciência de Nerval, no salto decisivo para a loucura[1], são uma criação única do Romantismo, ou melhor, da Weltliteratur, um templo, uma cosmogonia do Sol negro da Melancolia[2], “o mais terrível e o mais belo dos mundos possíveis, um livro afinal, nada mais que um livro”[3]. Talvez, nenhum outro para além de Nerval mergulhou tão profundamente no infinito oceano do projecto romântico – de tal maneira que Jean Jouve se lhe refere como um poeta que sai fora, como que uma aparição[4] – demonstrando uma incessante “vontade de Absoluto”[5] – di-lo o tradutor José Caselas – esse Absoluto posto como objectivo estruturante do Romantismo, como imagem da transformação do mundo e da vida pela poesia, pois a “ «via alemã» represent[ou] para ele a exploração do universo da alegoria, do sonho e do símbolo, das camadas subterrâneas da consciência, da descida ao fundo de si mesmo”[6]. Estes sonetos, tal como Aurélia, reúnem e são exemplo dessas características românticas que apresentámos anteriormente. Possuindo um conhecimento vasto de vários tipos de mitologias, como a egípcia, a hindu, a nórdica, aliando leituras desde a Cabala aos escritos clássicos e modernos, dos gregos (mitos e poesias) ao cânone romântico encabeçado por Dante e Shakespeare, mais a sabedoria mística, alquímica e Taroísta, Nerval cria uma nova mitologia. Ora, esta nova mitologia, repleta de figuras díspares, já nada têm a ver com o contexto de onde provieram, ganhando uma outra vida que respeita somente o mito que nasce em cada soneto, razão pela qual, um poeta que se sente extremamente próximo do autor das Quimeras, Antonin Artaud, se refira a elas como “tragédias”, “dramas de espírito, da consciência, do coração”[7], cujas personagens elevadas a uma dimensão da vida superiorizam as personagens das tragédias do génio e bardo inglês Shakespeare. Essa condição dramática é de tal forma pregnante no pensamento de Artaud, que o poeta chega mesmo a recusar, embora reconhecendo as fontes de onde Nerval colheu as imagens, as personagens, qualquer intenção de interpretar as Quimeras pela via única da simbologia:

"Quero eu dizer que as Quimeras não podem explicar-se pelos Tarots, mesmo que eles sejam vistos como o interno jogo de uma prefiguração alquímica das coisas, e o drama de todas as figuras que entram nesta prefiguração é não poderem também elas explicar-se com este sombrio parto de princípios que está na base da Mitologia, porque os princípios da Mitologia foram seres de quem Gérard de Nerval, para ser, não precisava." (ARTAUD, 1988: 62).

chegando mesmo a afirmar que, em vez das fontes explicarem os poemas de Nerval, deveriam ser os poemas de Nerval a explicar as fontes[8]. E num único gesto, o da criação desta obra de arte, Gérard de Nerval demonstra o seu génio, enquanto aglomerado de talentos, enquanto sujeito que agarra toda a sua genialidade e mergulha no seu abismo gerando uma obra que ultrapassa a dimensão do seu criador, força incrível da imaginação e da fantasia; demonstra igualmente o processo de velamento-desvelamento do mistério do sublime, procurando alcançar o Absoluto e reduzi-lo ao tamanho finito da forma rítmica de catorze pés, criando um rosto da beleza que oculta o sinistro da sua criação ou, como profere Artaud, “[N]as Quimeras não há um só poema que não faça pensar nas mortais angústias físicas de um primitivo parto”[9]; e testemunha a capacidade simbólica do poeta, no sentido de transformar o mundo, de revelar o carácter ambivalente das palavras, das personagens, de mitos antigos[10].

Ora, aproximámos ainda há pouco, de forma lateral, símbolo – como muitas vezes são consideradas as personas dos sonetos quiméricos – a imagem; é necessária a sua explicação, o seu esclarecimento, voltando a Blanchot[11]. De tudo o que já foi dito, aqui, sobre o símbolo falta justificar porque este é sinónimo de imagem; é que, sendo o símbolo uma experiência simbólica, ou seja, uma experiência que reúne elementos opostos num só corpo, o símbolo escrito e oferecido ao leitor nada mais será senão a imagem de uma paixão, de uma existência, uma morada que é a obra. As personagens nervalianas das Quimeras, as suas próprias quimeras, serão, assim bem, a imagem da experiência que foi a sua vida; se símbolo há será pois Nerval e as Quimeras o seu Rosto, uma imagem de si, da sua vida, que oferece ao Outro. Contudo, qualquer interpretação, ou leitura desta obra deverá ter em conta, ou melhor, terá de ir além da simbologia ou da procura de carácter biográfico do autor. Não se procure Nerval, a verdade de Nerval, nesta ou naquela personagem, um traço da sua vida biográfica neste ou naquele mito retomado e transfigurado até à novidade que agora se apresenta. A verdade de cada poema está no poema para além da vida do seu autor, do símbolo, da mitologia, da alquimia, do misticismo, do Tarot, da Numerologia, ou antes, é isso tudo misturado – é uma Quimera, afinal, como cada pessoa é, ou seja, um conjunto, uma mistura combinatória de vários elementos[12] – mas estaríamos a reduzir toda a força do poema em vez de libertar a sua força, concordando, pela nossa parte, com Artaud:

"Porque a primeira transmutação alquímica que se opera no cérebro de um leitor dos seus poemas é perder o pé perante a história e o concreto das recordações mitológicas objectivas para entrar num mais válido e mais seguro concreto, o da alma do próprio Gérard de Nerval, e com isto esquecer a história e a mitologia e a poesia e a alquimia." (op. cit.: 62)

Dito de outro modo, a interpretação focada na arqueologia afunda-se no “dentro” do fora do poema à mão, em vez de, e isso sim é tocar no poema no exacto momento em que nos toca, no momento em que range connosco, ler, ver onde o nosso rosto se reflecte na imagem que é igualmente espelho, ligar-se ao “fora” que se encontra dentro do poema.

De modo a terminar – se alguma vez se terminará a leitura – este texto, faremos uma apresentação do primeiro soneto d’As Quimeras, procurando afastar-nos, no que nos for possível, da simbologia e da mitologia[13].

El Desdichado, que numa primeira versão se intitulava Destino, é, para além do soneto mais conhecido das Quimeras, tido como um exemplo da forma poética ou carta de intenções do poeta[14]. Verdadeira quimera em si, tecendo uma intertextualidade desde o Ivanhoe de Walter Scott ao mito de Orfeu, dando saltos espaciais e temporais, é acima de tudo uma declaração da sua própria condição, senão mesmo da condição humana. Desdichado, que significa o infeliz; unindo-se aos substantivos que abrem a primeira estrofe indica a característica sinistra, inconsolada, ligada à perdição pela morte, a esse destino, do ser humano. O nosso reino, imenso, intemporal é, desde sempre, um reinado caído na noite escura, a mesma que ilumina o nosso génio criativo e poiético, única forma de esperança contra o desespero e a morte, a conquista e a perda do Amor. De facto, a Melancolia, de acordo com a teoria dos humores de Galeno e Hipócrates, relaciona-se com o estado inspirado ou exaltado da habilidade intelectual ou artística, e a esta associa-se também a capacidade de profetizar se estivermos perante um génio melancólico[15]. Esses traços poiéticos identificam-se com a personagem Orfeu, a sua lira e a descida ao Inferno, o Aqueronte, como imagem do que por vezes é o caos da criação, do pensamento. O poema fala-nos também dos nossos laços espaciais e temporais, como seres intimamente ligados e produtores dessas dimensões. O nosso tempo e o nosso espaço nunca são, na verdade, somente aquele em que vivemos, mas continuamente nos projectamos em todas as dimensões, constantemente nos encontramos em viagem. E por fim, o grande drama, a par da morte, o Amor, o corpo amado que se sonha, se fantasia, se imagina, que nos embala, seduz, por um canto que só nós ouvimos – só nós ouvimos o nosso amor, ninguém escuta, ninguém vê o laço invisível que une dois amantes – e que envolvemos num manto de mistério, quase religioso, sagrado.

Não é decerto uma interpretação profunda do soneto. Permanecemos aqui como ficámos na primeira vez que lemos As Quimeras: há qualquer coisa aí que sentimos, escutamos, entendemos, que fomos à procura, mas que nos faltava sempre essa qualquer coisa. Fomos entalados pelas pinças da lagosta ou a Narval nunca chegou a mostrar o seu dente.



[1] Dizemos a grande quebra ou salto, pois antes de 1853, ano em que Nerval produz esses sonetos, já antes tinha tido momentos ciclotímicos de alteração do estado de realidade e recuperado. Este, no entanto, é decisivo e coincide com a realização da obra pela qual é mais conhecido, estas Quimeras, a assombrante Aurélia, o Les Petits Chatêaux de Bohème e As filhas do Fogo. Nas palavras de Pierre Jean Jouve: “ (…) a loucura abre-lhe outra saída, liberta um eu terrífico e segundo, ao qual se associa ainda, por ternura irresistível, o lúcido e claro eu do indivíduo meigo e do artista perfeito. Reside aqui o maior mistério: o do artista que não só conserva os dons como os aumenta sem mudar de estilo, aplicando-os minuciosamente a uma matéria que lhe mete medo”; ou ainda nas palavras de Théophile Gautier, seu muito próximo amigo da aventura romântica, “A Razão quando escreve as memórias da Loucura, ditadas por ela”. (JOUVE, 1991: 43).

[2] Versos da primeira quadra de El Desdichado de Nerval.

[3] BLANCHOT, 1984: 16. Embora esta definição de livro não se refira às Quimeras, pareceu-nos ajustar-se na perfeição.

[4] JOUVE, 1991: 35. “Sim, Nerval é uma aparição no Romantismo, que atravessa sem parecer já que lhe pertence”.

[5]NERVAL, 1992: 8.

[6] Raymond Jean cit. in. NERVAL, 1989: 12.

[7] Vd. ARTAUD, 1988: 64.

[8] Vd. ibid.: 63.

[9] Ibid.

[10] Ibid.: 58. “ (…) perante os Mitos (…) Nerval (…) acrescentou-lhe a sua própria transfiguração, não já de um iluminado mas enforcado que há-de sempre cheirar a enforcado”.

[11] Vd. BLANCHOT, 1984: 100.

[12] Michel Serres e os Estóicos seriam aqui chamados com as suas teorias da mistura de corpos, malgrado a economia do texto.

[13] O poema apresenta-se em anexo, pelo qual enviamos desde já.

[14] http://www.etudes-litteraires.com/nerval-desdichado.php

[15] MACHADO SILVA, 2007: 125.

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