segunda-feira, 24 de maio de 2010

dizer isto não é certo




era imperdoável que não vissem a luz

a natureza tão justamente esquecida: o

tempo distante em que tudo era novo

nesse triste fluir a que se chama memória,

erros que sobre si deixam dobrar.


esse mundo de sombras a que também pertenço

vejo a parede branca da extensa casa,

preguiçosa imagem do segredo: porque

además, los animales irracionales afirman

as suas próprias canções

sem nenhum porquê, sem hora de razão, assim

emudecem a íntima traição

para dizer, somente, um último, um primeiro adeus.


viu tudo o que tinha feito até então:

e demorou-se com sombras no diário

demasiado pobre para

triunfo, nem uma pena nem uma penugem

me contara nada de nada, tudo estava dito, quando se

era tão novo


eu sou um bom ouvinte

mas com todos os meus bens perdidos

fui-me através dos campos

outros não

de um poeta para outro e

suspendem a ilusão da vida

nas casas acendem-se luzes. a obscuridade e

vê como ele se move na distância das janelas, nome

rosto

luz de nenhum outro mundo

quase uma rocha que desaparece

sombra que sustenta uma luz vazia

estreito charco do amor

verão

rosto: mais do que o espelho

carregado de humildade, amargura, fadiga

e vem o outono e vem o inverno. e

do lado do inverno

o nevoeiro arrefece

de natureza secreta

asa turvada de oiro que perturba os lábios

fome

sentado como quem ouve e já não escuta a

pátria

um corpo escuro

o teu deserto: esta noite,

esta noite não, velhas chamas são os fósforos

uma das coisas de que mais gosto no mundo dos vivos

cabelos do destino


ontem

a água

um fio de água, límpido, profundo

o teu corpo dentro do outro corpo

a luz da sua morte. eu sei

as penas, o depenado amor, carta após carta

ninguém se despede e todos seguem por caminhos


estou a explicar isto tudo muito mal. o deus músico

palavras. mas

quem receia escrever o findar do dia

a uma chama: as marcas do fogo, a coluna do fogo a fonte


este homem existiu, existe ainda. não lhe queria

um negro cabelo - de que perdido amante?

e não sei porque me disse ao ouvido aquela

sou eu sempre quem o vê

ouvi uma das noites deste outono

sem parar

viviam no mesmo apartamento ao ...

havia um frasco de comprimidos, tomou-os. sobre a cama esperou

mas hoje os seus nomes estão de mãos vazias.

esse homem, quem quer que fosse, vi-o

ele era a negra sombra que tanto se parece ao solitário

frágil voz,

ferrugem que maculou a juventude de sangue

e dos lábios saídos da infância

transparece a vida

de nenhuma fadiga, fome, sede

um nome sobre outro nome

um modo nítido e fugidio

sem sequer uma imagem apagada que se tenha refugiado


ainda estou vivo, apesar de enterrado

olhos não muito inteligentes, mas sensíveis, como convém

em luz, em tonalidade múltipla pelo fim da hora da

pele sobre a mais profunda água. as palavras são

relíquias tecnológicas; desenha sobre o desenho.

o incompreensível canto ficou por decifrar "não tenhas medo

espera, como se estivesse sentado, em solidão errante, entre

um charco de água afundada. voa, rápido

acesa ao favor do vento

não longe, uma velha cama de ferro

as lâminas do mar.


a partir de Não é certo este dizer de João Miguel Fernandes Jorge

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