como te irás
lembrar de quem
fui, o homem
de nenhum filho
complicador de ninharias
esteta de nada
sonhador de misérias
crente da desgraça
eu ali, tu, soalhada
em soalhada, ocupada
remexendo em tudo
apagando os rastos
fazendo-te presente
nas limpezas.
estrategas da ocupação
do lar, cada coisa
no seu sítio devido
tal como nós
equilibrando o prato
da balança desta relação.
preparamos as refeições
à vez, a fome
não nos derrota
(por enquanto).
quem de fora nos visse,
ainda jovens, saudáveis
malgrado a tosse
as constipações
o exercício feito
ao sol no jardim,
nunca acreditaria
o único som o relógio
da cozinha, o ressonar
do cão, o respigar
contínuo das pinhas
do pinheiro à lareira.
por momentos só esse
relógio habita a casa
e o sorriso quase
de mona lisa no retrato do avô
e nós onde estamos nisso tudo
perguntam os olhos por mim
vadiando pela casa.
foi tanto o que dissémos
que o que dizemos é já
tão pouco, um quase nada
que se diz do silêncio
e repara eu posso dizer
sou feliz, mas o que será
isso que há entre nós
é conhecimento ou fastio
é ser já velho sem surpresas
ou o terrível bem-estar
de nenhuma palavra.
há sempre o medo a rondar
a podridão sob o reino
a preocupação, claro, vem
do comportamento do filho
e tudo anda à sua volta
ou do trabalho mal-amado.
depois espera-se o mundo
fora de nós, a vinda
de amigos que na visita logo
se sentam (no fundo
ninguém está bem)
e partem até à próxima
visita e cá ficamos
a televisão, os jogos, tudo
por conquistar, não sei, talvez
tenha bebido já demais e só
a mim me ocorrem estas dúvidas
talvez tudo isto nada mais
seja que a revolta do meu estômago
esta vontade de dizer
já chega disto tudo
deixemo-nos de merdas
e amemo-nos de uma vez
por todas do silêncio para fora.
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