sexta-feira, 26 de março de 2010

última acostagem




abrir os olhos, já depois da noite
e, esquecido de todos, contemplo o plaino, em baixo,
e tudo ali vivia: o mundo descoberto
do corpo nasceu a sombra.

aqui os meus olhos esperavam que fosse brasa o céu
e não certifiquei,
que juntos hoje o mundo e eu
também sem esperança
podes tu abandonar-me.

como se eu, ao fitá-lo, o pudesse salvar.

o tempo é um mau ladrão: somente rouba ao homem
um desolado azul iluminado
que o olha e nada vê

resta-me um tempo breve
o espaço defunto de um presente
e não sei se há consolo
ou, acaso, de tão só, em mim só há surdez?
devo roubar palavras, ou inventá-las, e conceder
antes que me atirem para onde tudo está anulado,
e o corpo é só um vulto. com vida ainda nos olhos

e ali, disseram-me e eu nunca acreditei,
e sei somente
desejo de uma carne, e a alegria
de uma paixão que me transtornou.

para afirmar a vida
sai de ti e olha-te:
que é experiência e intimidade ao mesmo tempo,
e agora respiram juntos
e olha-te, com ela, na desgraça
agora que os nossos olhos sabem o que ignoravam,
a duração do mundo tão amado.

o sol, o guincho dos pássaros, os ventos
a sombra dessa noite
somente amor, sem pensamento algum,
e minha mão não queima
e estou aqui, cheios de amor os olhos
umas águas tristíssimas, hostis
irá cegar-me os olhos, e assim será
nas mãos do acaso.

o ar azul em volta da casa
e tive a experiência da felicidade
e depois de acabar, voltar ao mundo
onde o amor se acaba ainda
naquela viagem de todos para a névoa.


a partir de A Última Costa de Francisco Brines

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