segunda-feira, 22 de março de 2010

Coração de cão




título: Coração de Cão
autor: Mikhail Bulgakov
editora: Estúdios Cor



Visto em retrospectiva, eu diria que o país cuja literatura me arranca mais sorrisos e risos inesperados, roubados até à frente dos desconhecidos que partilham as minhas constantes viagens de transportes públicos, é a Rússia, ou melhor, os autores eslavos. Pelo menos quatro deles já muito me surpreenderam e muito me tenho rido às suas custas: Dostoievski, Gogol, Harms e, por último este, Bulgakov (sendo ele e Gogol ucranianos).
A descoberta deste autor não foi por acaso; é um nome conhecido o seu, bem como a que foi considerada a sua obra-prima – que ainda não li, malgrado tantas vezes o livro me saltar aos olhos e por tantas vezes me terem falado dele – o faustoso (arrisco o adjectivo por causa do título) “Margarida e o Mestre” (percebem agora o adjectivo?). O acaso foi o livro que me traz a este texto, “Coração de Cão”, encontrado numa banca da faculdade de letras, da já extinta editora Estúdio Cor (primeira, se não me engano, a editar Rimbaud traduzido por Cesariny em Portugal e “A imaculada concepção” de Breton e Éluard), e este sim o primeiro que li de Bulgakov.
Mikhail Bulgakov (1891-1940), médico de profissão, embora tenha exercido outros ofícios, como actor, jornalista, foi um escritor a tempo inteiro e de vários géneros, experimentando teatro, conto, romance, crítica, tradução e adaptação; e, tal como tantos outros grandes escritores da língua eslava, não se deu bem com a condição revolucionária da União Soviética, pela razão de que, muitas vezes, o pensamento político revolucionário se opõe ao pensamento estético revolucionário, ou, não se opondo, correm bastas vezes a ritmos diferentes. Ora, Bulgakov não é propriamente um revolucionário da língua literária, como um Maiakovski ou Daniil Harms, mas, tal como este último e Gogol, descobriu a sua força na sátira.
“Coração de Cão” é um bom exemplo disso. Passado no período revolucionário dos anos vinte, dos esforços, dos sacrifícios, das nivelações, afim de prosseguir o élan de Outubro, um médico ainda com muitas regalias conquistadas pelo seu trabalho e fama, grande inovador científico, adopta um cão de rua para uma experiência, ela própria, revolucionária: transformar um cão numa pessoa. Como um Dr. Frankenstein dos tempos modernos, a sua experiência alcança um sucesso estrondoso e descobre um caminho por desbravar na ciência. Também aqui, nesta história, a natureza revela uma das suas leis, isto é, certas coisas deveriam manter o seu próprio curso, certos mistérios deveriam permanecer insondáveis, há sempre um grau de acaso, de imprevisibilidade que a razão humana não abrange por completo. O cão torna-se realmente humano e como o monstro de Mary Shelley volta-se contra o médico. Não porque, por ser horrendo e a acção da aparência se dê como o primeiro passo para a humanidade e a inclusão na sociedade, force o médico a criar um ser semelhante, ou Bulgakov retome alguma tese rousseauista do bom selvagem patente no romance da autora inglesa; bem pelo contrário, os traços caninos desaparecem totalmente ao longo do curto tempo da novela – fora uma ou outra tendência, como coçar as pulgas ou caçar gatos – e o novo homem surgido seja aceite pelos seus congéneres, chegando mesmo a exercer uma profissão digna de um ex-cão. O novo homem revolta-se contra o seu criador porque quer ser livre, completamente livre, custe o que custar. Ora, o médico sente-se demasiado responsável pela sua obra; e sabendo muito bem que a aparência não é na realidade nada, ou melhor, que a par da evolução da aparência humana que distingue o homem dos outros seres há uma outra evolução, a da civilidade, de uma ética, trabalho esse inacabado na espécie humana, a passagem demasiado brusca pode trazer mais complicações do que bem – lê-se aí, talvez, a crítica de Bulgakov à revolução – e, na verdade, o novo homem e antigo cão é uma carga de trabalhos e só faz estragos.
Bom, diria que este conto ou novela é inclassificável, misturando sátira e ficção científica, filosofia e política, uma pura comédia humana. Sim, penso que seja isso, é um livro humano, por assim dizer, tratando nada mais do que o homem e os seus desejos. E como humano e por ser humano, posso rir-me enquanto procuro saber o que é isso de ser humano, para ser mais e melhor, mesmo quando nada parece existir para que o riso surja.

Nota: a imagem do livro que apresentamos não é a mesma do livro que lemos. A edição que li encontra-se já esgotada há anos e só em alfarrabistas poderá ser de novo descoberta. Por isso indicamos esta outra, decerto melhor, uma vez que foi traduzida directamente do russo:

BULGAKOV, Mikhail, Coração de Cão, Editora Vega, Lisboa, col. Escola de Letras, 2008.


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