sábado, 6 de fevereiro de 2010

a manhã de todas as noites

quando o amor nos falha, dorme-se
em casa de amigos. põe-se o despertador
para de manhã cedo, na expectativa
de surpreender o sol
nestas praças da nossa vida
mais íntima: fontes de água
suja e ignorada sem desejos
a cêntimos cada um, bancos
modernos e abandonados
sem se poderem deslocar e procurar
companhia, pombos ociosos
de peito rolado, velhos porcos e resmungões
fiéis ao do Restelo, aos berros, aos soluços
das memórias desabrigadas. ali passa
o Sr. Pais Martins, Luís para outros
mais o seu mundo de árvores e frutos
com as suas longas cãs e barba
ao vento no seu casaco de cabedal
e ali um cowboy maneta, guarda
de trocos para máquinas e snooker.
sob o pouco sol desta primavera
os turistas surpreendem-se pelo olho
fotográfico: oh it’s all so very typical
as varredoras cansadas, os sorrisos
dos vendedores de artesanato,
o grupo de homens e mulheres
à volta do obituário antes de apostarem
na lotaria popular ou no euromilhões
esperando ganhar qualquer coisa
antes de perder tudo e juntarem
o seu rosto de papel na vitrina, os cães
farejando um dono que lhes ceda abrigo,
alguma comida e porque não, já agora
uma festa. depois combinamos
um café com amigos cuja manhã
começa às três ou quatro e enquanto esperamos
os olhos fogem da bica e do cigarro
para uma outra praça
que por ser diferente ansiamos que lá passe o amor
ou o que queiramos chamar
ao que já não temos e ainda queremos.
preparamos, no tardar do amigo e do sol,
frases de conquista e que roubem ou resgatem
um tempo que passou, como:
“o meu coração é cor de vinho quando foge
se te vejo entre a rua da moeda
e a esquina do teu olhar”.
e como estamos sozinhos deixamo-nos levar
por um romantismo pior que o de Werther
e sorrimos uma vez e depois outra
quando já o amigo chegou
queixando-se da muita luz
ferindo os olhos e concordamos
claro, já que o sol nos bate ao longo
de todas essas horas que foram
passando numa e noutra praça
mesmo sem sair de casa
e sendo já noite. na verdade
apago melhor a luz com um livro
e encontro-te aqui.

1 comentário:

Anabela disse...

Estes versos doem o coração!