sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Explicação dos Pássaros




Autor - António Lobo Antunes
Editora - Dom Quixote




Há muito que tenho desejado escrever sobre este escritor português, mas nunca soube como. Na verdade, não sei como escrever sobre qualquer escritor. Aguardo sempre qualquer coisa que fermente e que force a sua saída, nunca sabendo ao certo o que daí venha. É o problema da primeira frase, ou não, não sei. Por vezes, surge-me logo a primeira frase e sei como terminar – não com uma frase, mas um movimento, ou uma imagem – e só o meio se mantém indistinto, mergulhado numa bruma, completamente desconhecido, qualquer caminho é bom. Decidi-me, pois, falar de António Lobo Antunes – como se fosse preciso apresentá-lo, como se ele não tivesse uma máquina imensa promocional por trás, digladiando com a de Saramago? – e deste livro que, neste preciso momento, ainda não acabei de ler.
Em 1969 um grande filósofo francês entregou a sua dissertação de doutoramento, intitulada “Diferença e Repetição”. Essa obra lançou as bases de toda a sua filosofia futura – embora já antes, em 1953, tivesse começado a sua escrita filosófica abordando vários autores da história da filosofia – que num ritornelo se vai repetindo. Esse tema, o da repetição e da diferença, que se pode resumir, pobremente, por toda a repetição introduz no seio do Mesmo a Diferença e toda a Diferença produz a repetição; pode igualmente recobrir, como uma pele sob a primeira, os impulsos de tantos escritores.
Dizem, muitos teóricos, filósofos da arte, críticos, que todo o grande escritor, ou artista, cria apenas uma única obra. Uma única que o define para toda a vida, à qual sempre volta, sempre retorna, como um momento demasiado precioso e perdido – tanto mais iluminado quanto mais sonhado, tanto mais precioso quanto nunca o tendo, talvez, tido – que se deseja reter, voltar a ter. E como nunca se volta a ter, por nunca, talvez, alguma vez, ter tido, se procura de todas as maneiras, de novas maneiras, por novos caminhos, novas vozes, repetindo e repetindo, para “falhar melhor” dizia Beckett. Relembro, por exemplo, Malcolm Lowry, Thomas Bernhard, James Joyce e tantos outros. E em Portugal? António Lobo Antunes.
Mas o que quero eu dizer com Lobo Antunes ser um repetidor? O que se repete? Não é a história em si que se repete, nem, como se falássemos de uma série, um conjunto de personagens que de história para história constituem o elemento de repetição. O que repete, em António Lobo Antunes, é o “motivo”, por assim dizer. Cada um dos seus livros é um retrato de “Portugal”, de um país em crise. Quando se começa já a crise se instalou em todas as estruturas: a crise do romance, com a sua linearidade espácio-temporal fragmentada, com a sua anulação do “autor” inscrevendo-se numa herança de vanguarda; a crise da relação entre autor e leitor, e quantos mais leitores houver de novas gerações a lê-lo mais se abre a crise – talvez até a crise fôr só mais uma história na História, mais uma ficção – as crises das personagens, homens e mulheres de meia-idade, ex-combatentes, velhos, crianças, todos afogados, todos desiludidos.
Todavia, talvez não seja bem o país em crise, mas mais do que ele é feito, a crise que faz morada quando a criança, os seus sonhos, as suas memórias, constantemente obrigadas a um processo de arrumação interdita ao adulto, quebram o isolamento e se descobre que toda a fôrma, todo o molde a que o adulto se sujeitou, pensado duro para aguentar as vicissitudes da vida, se esfuma, rui-se. A crise já está instalada desde origem. Aquela que é perscrutada, analisada, avaliada por cada personagem, a crise própria de cada um, desperta a qualquer momento, inesperadamente. E como a “fenda” de Scott Fitzgerald, basta uma mínima, imperceptível lasca, para que a crise vá abrindo caminho até separar o sujeito, assentando entre a vida do sujeito e a vida exterior a ele – as ligações familiares, amorosas, de trabalho, casuais, etc. – e de um a outro lado, nada mais que o combate interminável, a desavença de ilusões de parte a parte. De quem é a memória? De que lado se mostra a verdade de uma memória? Como uma memória poderá ter um lugar de excelência numa pessoa, enquanto noutra, a memória da mesma situação, não tem qualquer valor? E se tudo se joga com uma memória e essa memória já não joga connosco, o que se ganha, o que se perde, como não entrar em crise?
Contudo, se é esse o jogo das personagens – por exemplo, neste preciso romance, a personagem principal, Rui S., descendente de uma renegada família rica, fugindo ao destino prescrito de estudar economia ou direito e seguir as pisadas do pai, preferindo as letras e a docência, divorciado com dois filhos mas de novo casado com uma colega da faculdade e membro do partido comunista, enquanto ele nunca foi aceite pelos camaradas, vê-se numa queda até ao suicídio, avaliando os seus passos, as suas escolhas – que outro jogo se descobre recorrentemente em António Lobo Antunes?
Já o referi, esse da crise do país, da ferida que salta à vista. Lê-se, romance a romance, o encontro do ex-combatente, do idealista derrotado, do adulto perdido na infância de um país ligada à sua própria, os ecos das lutas sociais, os casamentos desencontrados reflectindo a própria vida social do país. Há uma História aí, a parte viva dos factos que enchem os volumes da História de Portugal, que podem trazer o tempo das descobertas – “As Naus” – por exemplo, mas ainda mais a história contemporânea de Salazar aos dias de hoje, passando, obviamente, pela Revolução de Abril. É de relevar tudo isso, todavia, o que mais me toca é, exactamente, essa vibração do texto de Lobo Antunes, explorada de forma intensa, emocionalmente, nas palavras das personagens ultrapassando a História. Não é o país que (me) interessa, mas bem as pessoas. Mantenha-se essa vibração, esse movimento emocionalmente confessional afastando-se o quadro envolvente e cada uma destas histórias nos toca.
E cada vez que leio Lobo Antunes não consigo evitar uma tristeza que me acomete, como se ao longe escutasse o rumor de uma promessa indesejada.

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