sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

a suprema ficção: última nota




e por quê, senão por ti, sinto eu amor?
e ver de novo o sol com olhos ignorantes
como a manhã atira fora o puído sono e o luar.
pulsando no coração como sangue recém vindo,
disto emerge o poema: de vivermos num lugar
o canto da almofada. torces-te e um gemido
talvez só imaginado, mas bem imaginado
como um homem e uma mulher que se encontram e amam.

podemos nós construir um castelo-fortaleza-casa,
clarões. mas a apoteose não é
o inanimado, difícil rosto. quem é isso?
isto muda, aquilo muda. assim, as constantes
as cortinas com metafísica minúcia
de uma suspensão, de uma permanência, tão rígida
e então o que é próprio do êxtase acontece.
se bem visto, mas talvez, também, encarnado.
um único rosto como fotografia da sorte,
possuir no coração, ocultar e ser em nada conhecido.

a esposa, para além de esmeraldas ou ametistas,
de uma fala, feita um pouco só de língua?
os adequados amores. o tempo os escreverá.
onde a luz cai de um modo mais que sensual.
invade o quarto, adormece e é a noite.
o gasto sentimento que nada de si deixa,

cada um deve o outro tomar como sinal, curto sinal
como pinta um pintor com cor empobrecida
sob, profundamente sob, a superfície do
ser possível. deve ser possível que, com o tempo,
há um mês, um ano, há um tempo
uma coisa final por si mesma e por isso boa:
inclinada sobre o trabalho, ansiosa, contente, sozinha,
se tem que morrer, ou vive do pão da palavra que confia.


A partir de Notas para uma ficção suprema de Wallace Stevens
2009

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