quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Um charco num pequeno dia




No meio de frases destruídas
onde nos sentámos rosto a rosto
onde vogava no céu da tarde
esse vento morto da janela
o meu corpo descobre no teu corpo
o torvo silêncio do outono.
ninguém mais nos vê
povoado de presságios o olhar
pousamos a boca contra a boca

dou-te uma luz de azeite para te perderes.
a sombra azul chamada céu.
a lua de verão numa polaróide.

salto da janela para o fundo:
conto os quadrados carmesim
defendem os lugares sem rumo:
abrem as portas exiladas.

da janela vê ao pôr-do-sol
um antigo rio, as últimas névoas da manhã
e a densa distância das águas
onde ele corre para se ocultar.
a neblina prestes a partir
o desejo é o limite da exclusão, uma janela.
dado a crepúsculos.

a luz separa a madrugada da manhã
fugiram de mim as criaturas
que não tinham onde ir dançar
e não haver nada, nem uma cantiga.

que sentido houve para o que aprendeste?
alguns minutos no corredor
escreve SEM SAIDA

a viscosa luz da madrugada
a manhã do dia leva a noite num fino fumo.
acordei de mãos embaraçadas nos lençóis
sobrevivem aos sonhos infantis
incerto o tempo, o lugar incerto,
adiam a morte acabando por chegar.
nesta luz urbana, coitados de nós os dois.
uma coisa de prisão saindo da penumbra.
esperas que me debruce para me empurrares
ao anoitecer o friso das roseiras
não sei de quê nem donde
canta baixinho junto da vidraça,
no reprodutivo vazio dessas aulas
a perspectiva assujeitada do lugar

o inóspito esgar do mundo não me vê.
faz de ti um estrangeiro.
não consigo, ao fim, imaginar-me morto
uma paz duradoura as paredes húmidas
livros e no fim da tarde
vou dos meus lábios para os teus,
onde o olhar escolhe como ver
e voa e canta e perde-se
«eu gosto muito de falar contigo»
a amar, a cobrirem-se de pó,
para sempre, para outro lado qualquer
escritos na parede
em flores azuis, nas outras dos cardos,

adormeces tão perto dos meus dedos
à flor do vento
e sem sentido que temi acordar-me.
só de alegria e desconhecimento
para a claridade que ninguém ainda conhecia.

era a meio da tarde, a meio
para dizermos quem éramos.
entre os meus dedos e alguns botões.
essa urgência de voltar à mesma
igual aos outros dias de noticiário.
uma gente balofa sem sobre que dizer
os impropérios antigos
com um sorriso de confeitaria
versos sofoclesianos
se não foi bem assim, foram bem assim
a terra destas árvores nocturnas

mas o ritmo dos gritos desta noite
perdem-se na água sem fim.
a seriedade voltava a fogo brando.
as horas que julgava certas.
ensacam-se na linha da aldeia e mar.
no chão, debicando restos, alguns pardais,
dia atrás de dia
inumeráveis. de quê, não sei.
tão pouco tempo, meu amor, és o meu amor.
de cada vez dizemos «já passou».


A partir de Os dias, pequenos charcos, de Joaquim Manuel Magalhães

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