quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Jean Genet - nossa senhora das flores





Título: Nossa Senhora das Flores
Autor: Jean Genet
Editora: Difel



Falo-vos do sítio da solidão. Do estranho, inquietante, misterioso e interior sítio da solidão. E peço-vos para imaginar, essa faculdade potenciada pela solidão, a sua maior oferta.
Imaginem-vos crianças. Imaginem-vos sendo abandonados pela vossa mãe nas escadas de uma casa de adopção, exactamente por essa pessoa que vos poderia amar incondicionalmente. O vosso pai, nunca visto, nunca dito, ou mal(-)dito, para sempre, anónimo, sempre incógnito. Imaginem-vos, depois, a crescer nesse lar com tantas outras crianças como vós, uma casa de excesso de necessidade de amor e ele, o amor, nado-morto aos pés da escada, guardado, se calhar, num sótão ou cave onde se depositam as coisas às quais os olhos não mais querem ver. Mais crescidas, então, são levadas por um casal que necessita de ajuda numa quinta, mas, passado algum tempo, são falsamente acusadas de roubo e julgadas e encarceradas num instituto de “educação”, um verdadeiro inferno. Há educação, é certo, mas educação correctiva, mesmo se o que falta é o amor; corrigir-se o amor com rigidez, com respeito cego pela autoridade, pela mudez de afectos, pela brutalidade da mão. Por vezes, nesses casos, o amor descobre-se entre crianças do mesmo sexo, pelos mais fortes, que não choram e até nos encobrem. Sair na maioridade e todavia marcados para sempre, uma marca indelével de maldade, um comportamento revoltado. Somos devolvidos à sociedade que nos afastou e não nos quer, não quer maus rebentos. Vadiamos, pois. Empreendemo-nos nos pequenos furtos, na prostituição e enredamo-nos num ciclo de entradas e saídas nas prisões, onde nos descobrimos, onde nos apaixonamos, onde perdemos o amor reencontrado, onde nos libertamos para um outro mundo. Aí, invertemos o mundo; onde reina o Bem faz-se reinar o Mal, ao Belo elevamos o Feio, o nosso respeito dirige-se para os abandonados, os escorraçados, os marginais, os ladrões, cobardes, assassinos, os comportamentos desviantes, os malditos e coroamo-nos o seu aedo, o seu poeta, o seu príncipe.
Podem parar de imaginar. Essa criança tem um nome, é Jean Genet.
De facto, Jean Genet (1910-1986), até ser descoberto numa das margens do Sena a vender livros roubados e alguns manuscritos – onde se encontrava este belo livro, “Nossa Senhora das Flores” – por um dos nomes maiores da cultura francesa da altura (falamos dos anos da segunda grande guerra), Jean Cocteau, viveu uma vida, no mínimo, difícil. Quando se publicaram os primeiros livros, andava já por volta dos quarenta anos, dois romances e alguns poemas, o sucesso foi imediato, não impedindo, contudo, manter-se vagabundo de coração e pátria até ao fim da sua vida – aliás, costumava dirigir-se à sede da editora Gallimard levantar a sua comissão de vendas e zarpava logo, bolsos cheios de francos, para um hotel ou outro país – tendo sido enterrado em Marrocos, onde encontrava uma certa paz e simpatia pelo povo árabe.
Para além do abandono, três outros acontecimentos assinalaram a sua vida: a morte do seu primeiro amor, Maurice Pilorge – um condenado à morte, ao qual Genet dedicou este romance e um poema de extrema beleza –, a edição de um ensaio por Sartre, que o conduziu a um temporário, mas cruel, mutismo literário; e a morte de outro seu amante, um funâmbulo. Terá sido, também, a forte amizade com Sartre e Beauvoir, que o despertou para a política, levando-o a abraçar as causas da Palestina e dos Black Panther (foi, é preciso sublinhar, o único branco que os Panther criaram e manteram relações de amizade).
À força de uma linguagem barroca, trabalhada, cuidada, mostrando um completo domínio do francês – daí, mesmo as posições conservadoras da literatura se vergarem à verve linguística de Genet, embora o seu ódio confesso à França – foi aos poucos e poucos tornando-se uma das vozes mais importantes do pós-guerra. “Nossa Senhora das Flores” é um exemplo disso, contendo todos os traços distintivos da poética genetiana, queremos dizer, a mescla entre ficção e autobiografia como num sonho, não se sabendo qual sonha qual; a confissão dura, fria, mas poética, do ódio de Genet ao mundo e as suas ordens, da sua condição de prisioneiro (Genet está preso e é da prisão que conta a história); uma ficção que aborda a vida da margem pela margem, os marginais (aqui debruçando-se sobre um triângulo amoroso entre um travesti, um ladrão traidor e um adolescente de beleza abismal lembrando um Rimbaud). “Nossa Senhora das Flores” é um romance poético e de um humanismo arrepiante, pertencendo à minha lista de favoritos e que me levou ao seguinte pensamento, se me permitirem: se Georges Steiner diz que a solidão é uma das pedras de toque da criação artística, todos deveriam ser presos pelo menos uma vez na vida, durante alguns anos, para nos oferecerem obras de arte.

2 comentários:

samuel disse...

Gostaria muito de ter esse livro, sabe onde posso conseguir?

fernando machado silva disse...

olá. sinceramente, não sei. o melhor será procurar em alfarrabistas. infelizmente, não se tem reeditado jean genet, exceptuando, creio, na "sistema solar". há muitos alfarrabistas pela internet e na blogosfera. eu aconselhava-o perguntar a paulo da costa domingos, o editor da frenesi.

um abraço e desculpe pela demora na resposta. não sabia que tinha um comentário.