segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Boris Vian






Título: A Espuma dos Dias
Autor: Boris Vian
Editora: Relógio d’Água



Há já alguns anos, encontrava-me eu e um amigo num café. Saído da adolescência, o meu coração, tornado campo de batalha, aprontara já as suas armas para o futuro. E embora tão novos ainda, já fazíamos listas dos livros que mais nos marcaram, como dois velhos desenhando os mapas das suas vidas sentimentais no tampo de uma mesa. Com a impetuosidade e pressa que é comum a um jovem de dezanove ou vinte anos, não demorei muito a indicar os dez livros que me resgataram de um crescimento demais solitário e apresentei os meus marcos geodésicos num guardanapo, que ainda guardo – de vez em quando, dirijo-me à estante onde o mapa se esconde num caderno, desses de capa dura em que os lojistas fazem a contabilidade dos seus infortúnios – não vá me ter perdido entretanto. Abro o mapa, olho a lista e anuo. Sei que me posso perder, tal como não me aflige muito se levar anos a reencontrar esse amigo.
Lembro-me, quando li este livro, de ter ficado bastante tempo a pensar no seu título, aliás, em todos os títulos de Boris Vian. Há qualquer coisa aí que nos estranha. Sei que, entre as críticas que lhe fizeram, a questão dos títulos era recorrente, mas títulos mais certos para esses livros não há e ainda assim estremecem-nos: “O Arranca-Corações”, “As Formigas” (nada de estranho neste, mas leiam-no e logo a estranheza vos apanha desprevenidos), “Erva Vermelha”, “Outono em Pequim”, “Espuma dos Dias” – especialmente o primeiro e estes dois últimos, podem ser lidos como metáforas ou, porque não, poemas de uma única frase. E o seu autor?
Boris Vian foi uma criatura muito estranha. Morto muito cedo – sentado numa cadeira de cinema enquanto visionava os últimos preparativos da adaptação de um dos seus negros romances policiais – na sua curta vida fez de tudo. Engenheiro, poeta, escritor (novelas, romances, teatro, ópera, contos), ensaísta, crítico de arte em geral, letrista, trompetista, membro da escola patafísica e talvez me escape qualquer coisa.
Ora, tendo sido um grande amigo de Sartre, os seus romances e contos poderão estar imbuídos de um certo existencialismo (embora não seja uma condição sine qua non), mas de um existencialismo surrealista, se isto alguma vez poderá ser dito. É da vida que ele fala, a vida plena de absurdo e de fantasia e música. As situações que povoam as suas histórias, que tanto nos fazem rir como chorar, como que tomadas de empréstimo à realidade, mas elevadas à potência máxima do exagero repleto de non-sense, são, no entanto, tão reais como a absurdidade de uma vida que rapidamente desaparece. E isso caiu-lhe em cima quando foi vivo, tendo sido recusado por tantas editoras, negado prémios literários, alcançando apenas algum sucesso – sucesso pela via do escândalo – quando se escondeu por trás de um escritor norte-americano de policiais negros e violentos, Vernon Sullivan, “traduzindo-os” para francês – duplo escândalo; um, pelo teor literário dos romances; outro, quando foi descoberto como o verdadeiro autor desses romances.
Mas os assinados por nome próprio são outra coisa. Como este, “A Espuma dos Dias”. Romance à letra. Um homem que vive com a companhia das suas invenções – um piano-bar, por exemplo, que consoante os acordes tocados nos dá uma cocktail – e um rato que fala, tem um amigo que se apaixonou por uma rapariga e que afinal se vai apaixonar e casar com uma amiga dessa amiga fascinada por Jean-Sol Partre – para que esta se apaixone ele torna-se igualmente um aficionado do filósofo arruinando a sua vida comprando todo o tipo de edições da sua obra – enquanto essa primeira rapariga se vai casar com o inventor. Como vêem não poderia ser mais romanceado. É uma história de amor, de paixão. Mas o fundo da história, afinal, é: até onde uma pessoa vai em relação ao seu amor? O que faria se “o amor da sua vida”, de repente, adoecesse com uma flor nos pulmões? O que faria para a ajudar, sabendo que não a consegue salvar? E, o que não deixa de ser pertinente, se “o amor da sua vida” se torna a sua vida e tudo o que ela encerra, o que acontece às coisas da sua vida? À sua casa, por exemplo?
O amor escreve-se de várias maneiras. Tantos tratados, ensaios, poemas, romances, conversas entre amigos que o dizem. Tantas definições. Ele é isto e isto e mais aquilo e não é aqueloutro e aqueloutra, exprime-se de tal e tal maneira, faz-se assim, diz-se assim e em tantas línguas e no entanto pouco ou nada se sabe, se ele parte, se ele acaba, se ele morre. Tantas maneiras de o dizer, tantos significados, tantas representações e, contudo, poderá somente ser uma invenção nossa. Bem que nos forçam a interpretá-lo com os clichés das borboletas no estômago, bem que se sabe das transformações bioquímicas no organismo forçando a sua objectividade científica tornando-nos afinal toxicodependentes de umas quantas hormonas e de químicos orgânicos. Mas, mesmo isso – acredito profundamente – não nos diz do amor. Sabemo-lo e não se diz. Reconhecê-mo-lo como reconhecemos um milagre. Emudecemo-nos com a sua força e deixamo-nos afogar por ele.

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