sexta-feira, 31 de julho de 2009

Parasceve de Maria Gabriela Llansol






Título: Parasceve
Autor: Maria Gabriela Llansol
Editora: Relógio d’Água



«Afinal, a melhor maneira de falar não é comunicar, mas escrever» (2001: 55)

Estive durante anos a adiar o meu encontro com esta escritora. O seu nome fascinava-me nas estantes das livrarias, sentia-o pulsar de entre todos os outros. Eu olhava mas não lhe pegava. Mais tarde, já mais velho, tive a coragem de tirar um exemplar, abri-lo e assustei-me. Não sabia o que tinha entre as minhas mãos e o seu nome ia-se enrolando mais e mais na minha língua e na minha biblioteca mental. Até que me atrevi por completo e ainda hoje não sei quem foi mais atrevido. Hoje sou eu, porque experimento falar sobre esta autora. Embora me diga, enquanto escrevo, que deveria escrever sobre outro livro e outro autor. Já comecei e prossigo.
Maria Gabriela Llansol morreu há muito pouco tempo. Foi capa de jornal e, mesmo assim, imagino que a maior parte das pessoas que leram o jornal da sua morte se interrogaram sobre quem seria e, possivelmente, até tu, caro/a leitor/a, que seguraste esse jornal, que leste o seu nome e agora também o lês neste e neste texto, não o saibas porque já o esqueceste. Mas talvez assim é porque o nosso trabalho sobre a memória é cada vez menor, porque a leitura de um livro é cada vez menos a aventura de se dobrar o tempo sobre nós. Llansol, esse nome com duplo L que se arredonda na boca e que imediatamente nos traz lençol, dobra e conduz-nos a dobrar o tempo, a reinventá-lo.
Digo-o já, a ti, caro/a leitor/a, para qualquer livro desta senhora é preciso estar preparado, tanto física como mentalmente e o mais importante é procurar fazer com que corpo e mente sejam um e esse um aumentado, dilatado, para um um maior com o livro. Esse, creio, foi sempre o pedido de Llansol. Criar uma comunidade de leitores sentientes, pacientes, activos, livres, abertos. Por isso, talvez, falar de um dos seus livros seja falar de todos eles ao mesmo tempo, cada um sendo uma pequena peça de um puzzle maior mas sendo já o puzzle, sendo já o todo, uma forma dele se mostrar, se manifestar.
E o que é um livro de Maria Gabriela Llansol? Um poema? Um romance? Um diário? Um ensaio filosófico? Tudo isso? Nada disso? Apenas escrita? Uma voz que construiu um mundo complexo dentro deste em que vivemos? Sim, talvez isso, não o saberei dizer. Mas que se trata, realmente, de uma aventura, disso não tenho qualquer dúvida. E como aventura, para mim, sempre lhe chamei de poema, poesia. Llansol é indefinível. Ela é em si mesma um texto, não uma pessoa. É um nome, um corpo textual, um ser-texto. Intemporal ou a-temporal, porque estava completamente fora deste tempo, sendo ela, ou o seu tempo, o tempo de cada texto seu. É um fascínio e uma incompreensão, basta ler as críticas e textos a ela dedicados por nomes tão importantes como o de Eduardo Prado Coelho, João Barrento, Silvina Rodrigues Lopes ou Manuel Gusmão.
Ora, se nas décadas de 50-60, certos críticos literários, tais como Barthes e Kristeva, e escritores franceses do “Nouveau Roman” abriram o campo da literatura a uma ausência de narrativa e a uma intervenção maior da parte dos leitores no texto dado pelo escritor – que já não se apresentava como “autor” – essa brecha foi bastante seguida e construída por Llansol. É de notar, por exemplo, alguns dos processos dos seus textos tratados de forma pessoalíssima e única sem qualquer equivalente. A narração é polifónica: a voz da narradora é apenas uma modulação de uma voz que liga, por invisíveis correntes, as personagens tornando-se a voz de cada uma chegando até à nossa, enquanto leitores; o texto é “preenchido” por espaços e blocos, espaços de silêncio que tanto separam blocos de texto como palavras na mesma frase, ou mesmo marcados por um longo traço (________________) pedindo a nossa voz no texto – quantas vezes sustive a minha tentação de, a lápis ou caneta, escrever nesse traço presentificando-me num texto que não me pertence, mas que por ventura é desejo da autora que isso assim se suceda, isto é, a nossa acção real na construção do texto que lemos.
Tinha já falado do tempo e de comunidade. Permitam-me só mais algumas palavras. Os dois são inseparáveis. Uma comunidade faz-se ao longo do tempo e percorrendo todo o tempo. A comunidade não é ou de mortos ou de vivos, pensados como corpos, mas antes a comunhão dos textos-corpos, que somos nós, a autora e todas as personagens intervenientes ao longo dos seus livros, como São João da Cruz, Espinosa, Thérèse de Lisieux, Ana Peñalosa, Nietzsche, D. Sebastião entre tantos mais que estão ainda por nascer.
Outro aspecto, e muito importante, de relevar é a presença do Feminino, como força universal, criadora, materna, amante. Os seus textos são femininos. Não penso que exista outro adjectivo que explique e resuma os livros e a obra de Llansol. Não digo feminino como reduzindo a um ponto de vista feminista que implique uma política, mas o que acima foi dito como força. É certo que grande parte das personagens é mulher, personificando todas as características ditas do feminino, tal como em “Parasceve”. Mas são mulheres percorridas por forças de devir, mulheres em transformação, mulheres rebeldes, não à procura de uma posição social ou apresentando-se como um corpo político em luta contra o homem, mas em direcção ao Feminino, fazendo o Feminino – e “Parasceve” trata de uma forma extremamente densa e bela esse caminho.
Não tenham medo desta mulher, Maria Gabriela Llansol, como muitos têm de Virginia Woolf, nem se assustem com os seus textos. Ler não é um entretenimento. Ler não é passar tempo. É dobrá-lo, fazer um outro tempo no tempo.

Vejam também: www.espacollansol.blogspot.com

2 comentários:

Cátia disse...

Llansol é tudo isso, descobrir esta escrita está a ser um prazer, uma aprendizagem e um consolo. É mesmo uma nova leitura. E foi reconfortante sentir que não sou a única a sentir assim.

fernando machado silva disse...

cara cátia,

antes de mais, devo agradecer o seu comentário neste blog tão pouco interessante e uma resposta tão atrasada, enquanto espero que a sua leitura também se tenha debruçado sobre ele, os poemas e outros textos.
de facto, llansol é impressionante. pena é que a sua leitura em portugal não tenha o mesmo impacto com que se descobre no brasil; e que só agora, com a sua casa, como museu, e o trabalho de joão barrento e outros, como curadores da sua obra, se lhe reconhece o valor. não deixe de visitá-la ou o site www.espacollansol.blogspot.com