quarta-feira, 20 de maio de 2009

Russell Edson - O Túnel






A primeira vez que ouvi falar deste nome foi na Casa dos Bonecos, em Évora, quando pai e filho Alegria nos alegravam semanalmente com os seus espectáculos de marionetas, que principiava sempre com a leitura de poemas ou textos escolhidos e lidos pela voz grave do Sr. Pai Alegria – era no tempo em que a alegria era um sentimento grave e partilhado. Vezes sem conta, porque leu muitas vezes um poema particular deste poeta, eu procurava memorizar o seu nome, mas ficava-me mais a sombra do poema na minha boca do que o nome do autor ou mesmo do poema. Por esta razão, por esta sombra, ou talvez por ser a minha estação favorita, deixo-vos aqui o poema por inteiro, cujo título é “Outono”:

“Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono.”

E o Outono prolongava-se porque nunca me lembrava de retirar o meu caderno para apontar o nome. E depois Invernos em que nem sequer procurava o livro. Pudera, como procurar um sentimento só nosso, mesmo vindo de um poema ouvido em noites de conversa, risos e copos, em livros deixados em prateleiras tão impessoais como as de livraria? Como reencontrar uma memória como se reencontra um velho amigo que nunca se viu nem se ouviu? E vieram Primaveras que ofuscam e apagam da memória Outonos, como esses que nascem em casa. Até que, no passado dia mundial do livro, em celebração a esse dia, descobri um pacote de poesia norte-americana por um preço reduzido (três pelo preço de um) e eis que, finalmente, encontro o nome e a mão desse Outono: Russell Edson.
Este é o único livro de Edson em português, uma pequena antologia da sua poesia, dessa simples poesia em prosa. Contudo, simples não quer dizer necessariamente fácil – a extrema simplicidade da escrita de Gertrude Stein ou do português Eugénio de Andrade ou do austríaco Paul Celan revelam um trabalho árduo e contínuo sobre a escrita, sobre entregar este ou aquele sentimento, esta ou aquela situação, este ou aquele pensamento, de forma eficaz, directa, ao leitor dando-lhe a vez para a continuidade do poema, do que ele diz.
Esse trabalho, essa oferta enigmática que é o poema – que todo o poema é – esse pedaço do mundo, de saber do mundo – todo o poema é, afinal, um pedaço de sabedoria que procura ser dita e passada de boca em boca, formando correntes invisíveis entre corações separados no tempo e no espaço – em Russell Edson transformam-se em pequenas lições, fábulas cuja moral é um estranhamento relativo ao seu olhar o mundo e cujo sentido é, por vezes, difícil de descortinar. Parecem-se muito com contos zen ou adivinhas de quem sabe algum segredo e que Edson tem pressa em contar mas não compreende completamente o significado desse segredo.
Talvez seja esse o motivo pelo qual o poeta raras vezes usa um nome próprio, ou um apelido ou alcunha, qualquer coisa que indique uma pessoa em particular, preferindo o anonimato dos substantivos para as pessoas (homem, mulher, Pai, Mãe), para os animais (vaca, porco, cão, etc.), as coisas. Assim, deste modo, diria, impessoal, em que situações quotidianas são transformadas em quase absurdos, com um certo toque surrealizante, descobrimos em nós uma resposta pessoalíssima, como se nos identificássemos com as personagens, emoldurando cada poema com sinais da nossa vida. Por outro lado, estranhamos igualmente essas personagens, esses homens e mulheres, porque dentro das suas vidas aparentando a maioridade, a seriedade do adulto, se movem, dizem, pensam, agem com a curiosidade das crianças, com a alegria das crianças, uma curiosidade e alegria que nunca devíamos esquecer e que devíamos praticar todos os dias.

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