sexta-feira, 20 de março de 2009

HOMO SACER, Giorgio Agamben





Vou procurar fazer aqui aquilo que ainda não experimentei – claro que antes de aceitar este convite de aqui escrever apresentando livros, nunca antes tinha escrito sobre livros – que é, caros leitores do canto literário da Palavra, escrever e apresentar um livro de filosofia. Sim, é verdade, um livro de filosofia que, talvez dirão, não caberá ou não deveria ter lugar aqui nesta página, uma vez que não é literatura – embora, como talvez igualmente saberão, muito debate se faz sobre o que é ou não literário e se a filosofia poderá encontrar lugar nesse domínio; não nos podemos esquecer que muita prosa e poesia são filosofia, quero dizer, uma busca de entendimento, de conhecimento, de explicação do(s) mundo(s) em que vivemos.
Ainda na última apresentação, a de Março, portanto, citei o nome do filósofo e um seu livro. Não é desse que falarei, mas outro que li há não muito tempo e que aparece aí de lado em imagem. O autor é o filósofo italiano Giorgio Agamben e o livro “Homo Sacer” – embora o título em português seja, “O Poder Soberano e a Vida Nua – Homo Sacer”. Considerado como um dos mais importantes filósofos da actualidade, em especial em Itália, conjuntamente com Toni Negri, o seu pensamento roda à volta de quatro questões, relacionando-as constantemente: a literatura, a poesia, a filosofia e a política. Ora, o livro que nos traz hoje, ou este mês, dedica-se completamente à política e, especialmente, a uma figura estranhíssima do direito romano que dá título à obra. Marca também uma linha de investigação de Agamben, a bio-política – resumidamente, trata-se do conceito que designa esse momento histórico da idade moderna (a partir do século xviii) em que o soberano conquista o poder sobre a vida e a morte da população, equacionando-se com os três dispositivos de controlo e de formação da subjectividade, a Escola, o Exército, o Hospital – iniciada por Michel Foucault, grande filósofo francês falecido em 1984.
Para quem pense que a filosofia é aborrecida, maçadora, enfadonha, com tanta informação que não vale a pena ser lida e demasiado difícil de se entender – como igualmente se diz da matemática – esta obra não se encaixa nessa dimensão. E mesmo se Agamben aborda um conceito do direito romano, o “homo sacer”, o que talvez levaria alguém a pensar na sua actualidade ou validade para os tempos de hoje, afirmo desde já que não poderia estar mais errada. O tema é bastamente actual e problemático, como importante para as discussões da contemporaneidade.
O “homo sacer” (à letra, homem sagrado) é uma figura despojada de qualquer poder e submetido ao poder soberano que se apresenta como lei: ele é a lei mas ao mesmo tempo está fora dela. Nesse despojamento o “homo sacer” dá-se como vida nua aberta à morte e insacrificável. É, portanto, uma vida sagrada. Mas se essa pessoa for morta por outra, a que mata não é punida, não comete qualquer crime porque o “homo sacer” encontra-se abandonado pela lei, isto é, o poder soberano relaciona-se com ele enquanto bando, enquanto membro de um bando. Ora, este abandono implica um duplo movimento ou, de outra forma, a relação do bando com a lei implica um duplo movimento: por um lado, ao ser abandonado, isto é, ao colocar-se em bando, excluí-se da lei e é fora-da-lei, enquanto que, por outro lado, essa exclusão implica a aceitação da prescrição da lei, o bando ao respeitá-la vê-se nela incluído – obviamente que me encontro a dar saltos lógicos no exercício da memória e, o relato resumido, este sim se apresenta de mais difícil leitura que o livro.
Somos conduzidos ao longo de um bem argumentado, claro e nada penoso estudo histórico, filológico, político e filosófico, desde a Antiguidade até ao Nazismo, que nos clarifica a nossa vida enquanto vida nua e, por fim, inevitavelmente, identificando-nos com o “homo sacer”. E como não? Ora, é essa abertura à morte, que todos nós partilhamos, e a sua insacrificabilidade que torna contemporânea a figura do “homo sacer”. Não se afirma constantemente a sacralidade da vida humana? Não é isso o que está em jogo no horror dos campos de concentração (tanto os da Segunda Grande Guerra, como os Gulags ou os de refugiados)? E nas discussões sobre as guerras, o aborto, a eutanásia, o suicídio, não é a sacralidade da vida um dos seus argumentos? É um livro, penso eu, importante para ambas as partes, para os dois lados ou facções destas discussões
Não poderei dizer mais. Não é este o lugar para essa discussão, melhor será um encontro à volta de uma mesa falando cara a cara, ou até mesmo por carta. É que é preciso tempo. É preciso tempo para se entenderem as coisas e para as discutir bem. Um livro, uma discussão argumentativa, uma conversa franca, sincera, honesta, demora, essas coisas demoram. É de uma velocidade diferente das imagens da televisão ou até mesmo da informação digital. É preciso tempo e são já duas da manhã do dia 20 de Março de 2009. Até para o mês que vem.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não acha que de alguma maneira o homo sacer é uma reinterpretação de tudo o que é controlado pelo Poder e que Foucault terá analisado em inúmeros textos e livros.

fernando machado silva disse...

é bem possível que seja, ainda não tinha pensado nesse aspecto. das leituras que fiz de agamben - poucas - parece-me que o trabalho dele, cruzando a hermenêutica heideggeriana e o estudo do par poder-saber desenvolvido por foucault, é um desenvolvimento da teoria da biopolítica, entre outros temas (como a estética e a ética), buscando exemplos que estabelecem charneiras (quase-)paradoxais. assim, de certa maneira, faz a filosofia devida a foucault dar pequenos saltos, embora preciosos se soubermos retirar o máximo deles. ou seja, se tivermos em mente, quer o "vigiar e punir", quer a "história da sexualidade", antes de mais, não podemos falar de um poder com letra maiúscula, ele é mais uma microfísica, uma rede estendida a todos os indivíduos e atravessando todos os corpos, o poder é sempre uma relação de forças, de poder de forças, de afectar e ser afectado, todos fazemos parte do poder. por outro lado, é certo que as macroestruturas (as instituições e aparelhos que constituem as relações de poder político, económico, administrativo, etc., criadas e mantidas por indivíduos e não por entidades transcendentes) desenvolveram técnicas de reorganização das forças, as mesmas que produzem indivíduos úteis e funcionais, sujeitos e subjectividades, normalizam os corpos, as vidas; mas, ao mesmo tempo que as relações de poder sujeitam também são resistidas, as forças não se eliminam, são antes reorganizadas, bloqueadas, podendo, sempre, vir a resistir. ora, eu interpreto o homo sacer como uma figura que está na fronteira, mais do que uma reinterpretação, um exemplo paroxístico e paradoxal da biopolítica que, embora mergulhado nas relações, escapa.
o que acha? eu não tenho ainda qualquer resposta, estou a pensar com a sua pergunta, à qual fico agradecido porque ando à volta com o foucault para um trabalho. apareça mais vezes. um abraço