terça-feira, 17 de março de 2009

Bellis eborae

a voz
estende o branco das pétalas à
capela ou na embocadura da escada que leva ao mar

eu só quis dizer
a chuva trouxe insectos negros, grossos
abutres e onde um dia destes se dizia que
já não são exactamente as mesmas pessoas tecendo círculos ao
vizinho; o conflito aumenta e permanece a desarmonia.

assim está bem. uma vez tentei escrever um poema sob o
ir além do tempo e do lugar a que se pertence
matriz
que não obedecia a outra lei senão à de um magma
é propriedade destes apaixonados e cabe por inteiro nas suas
pregas de negro em relevo, os pequenos, vulcânicos
ainda os vejo na pressa com que
ardentes estavam eles no baixo e amante olhar. teriam mais
do molhe onde se enredam os rosados ramos do tamariz
é verdade que também as suas vidas estão rodeadas
sejamos mais precisos
não eram as suas vidas belíssimas páginas a merecer.

quando perdemos de vista alguém
a sonhar fracassos sombrias vidas e obscuridades
os perdidos olhos do humano sofrimento; vê a pluralidade
não sabe da vida é completamente inútil. o tempo converte-se
na esfera ladina dos seus olhos?
como se heróis antigos tivessem regressado e inclinassem os
fantasmas, coisas vãs que ficaram fora do
contorno dos músculos, possante, vivo,
corpo, soerguendo a roda do vestido
entre as árvores possuída.

aqui é aqui, somente esta descrição tem
gente que se está nas tintas para que
pelo caminho da muralha
sob a mão esquerda
– certeza, claridade, o temor de fugir.
no meio do lago; se tivessem inconsciente descobririam a humilhante paixão?

hora de todos os dias
algumas letras, poucas palavras
terminou, desapareceu. desapareceu com os pêlos do
olhar
tímido, deixou que me aproximasse
com a morte. o sangue, a urina
nome
a mão que levava o resto de um náufrago
negra terra
e se a beleza é outra coisa
pensar em coisas tristes
suplício do desejo
os dias de verão, as horas – terríveis – do verão.
uma evidência possível do valor – e
mãos de agarrar o vinho e o pão e o doce
velho; e os tecidos que cobrem uma cama
a fragilidade do bem
aplicável a todas as coisas
da água, à luz do fogo – o símbolo – um pouco
a mudez animal do mundo
da noite
por toda a terra. renasce
a figura – descansa, longe de qualquer desejo
ele era o grande segredo: morrer também não significa
sombras nos seus passos
ainda

nesse dia cantou
a matéria do amor esbate-se nos seus limites
e o céu. a rudeza da sua mão aceita fumegante
da bondade do seu aparecer
atento, avaliador
quase o mesmo corpo. à
distância de um barco
tua vida
não percebo o porquê da tua mão que procura
de um modo inesperado e lento e se desfaz ao
vão achar nesse caminho
o rosto, a mão direita iluminados
tocou de vermelho?

coisas (o último mundo. nenhum outro mundo.
frente com a poderosa e pura inocência do desejo
apesar de nunca ter, de facto, existido.
pedra ardente de uma lágrima
de oceano. «ditoso o que desce à terra baixa. conhece
o fio cortante do tempo
penas verdes de um pato
a praça e a rua da cidade
à forma desse corpo. tocou-o num braço com o pé. não
céu e o mar

sentado no muro baixo sobre a cidade
conservo a terra e a planta no meu coração. amarelos e
esta é a paisagem da tua confissão «devastado
estava à espera desse encontro. há anos que trazia no
frio e cinzento o abismo move-se e não se
de chorar
sob o calor desse domingo de Agosto
daquele que nunca deixou de ser um
borrão azul. o desenho
um drama de sangue, orgânico – corpo e alma sobre
vida. não ouves nem vês
suspensos de um amor ainda não traçado. dá-lhe a
decrepitude de um mundo antigo. casas ricas
a parte maior de silêncio – os cães ao longe.

tenho muitos fragmentos para reunir.


A partir de Bellis Azorica, de João Miguel Fernandes Jorge
2009

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