segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Apresentação de um corpo ou o ofício de um sétimo dia

Eu encontrava-me atrás de uma janela riscada. A carne contra o vidro e era fraca a luz. Sei que havia um puzzle. Observava os pombos que de vez em quando batiam as suas asas cinza rasgando a névoa. A distância era já tão curta que não valia mais a pena aguardar a ruína da fronteira, como, por vezes, nos apressamos a enterrar na pele de um dióspiro maduro os nossos dedos e, de olhos fechados, esprememos o suco mole e rubro, levando-o depois à boca gulosa, imaginando que o que se encontra nas nossas mãos não é de todo um fruto mas um ser vivo aprisionado, de estranha textura e limites, manchando-nos e besuntando-nos. Eu procurava entender a origem do exterior da casa e do fruto que segurava nas mãos, encostando a testa à janela. Se a testa arrefecesse, eu poderia crer que a febre estancaria a torneira que pingava da cozinha. Gotas caíam, Os pombos bicavam. Gotas caíam em cima de pombos. Mas a janela continuava a passar tudo o que lá fora estava encoberto pela névoa.
Pensei de súbito que, se soprasse, calmamente, unindo os meus lábios peganhentos e deixasse, sem qualquer esforço, o ar escapar um sopro de flauta de madeira fina e aguda, ouvindo-se muito ao longe, afastaria a neblina cerrada na praça, mesmo sabendo do vidro que nos separava. O vidro, ao embaciar-se suavemente, provou-me absolutamente o contrário, afastando-me, muito mais para além, durante alguns segundos, que me angustiaram.
Seria a minha rude respiração o motivo desta névoa densa – uma mulher com um vestido de cetim azul petróleo, com minúsculas flores, crisântemos no fundo do céu esbatidos como nuvens, os cabelos ao vento tapando-lhe a cara numa teia magnífica e o vestido ondulando contra essas duas torres de mármore com que ela se mantém erecta, essa mulher aguardando o companheiro cortando a névoa com uma faca de dois gumes – quando a minha expiração atravessava os mínimos poros do vidro? Será que passavam, sem me aperceber, pelas falhas da janela, das paredes? Seria antes pelo tecto? Eu próprio me via a fumegar, o que me desviou o raciocínio por momentos, levando-me a crer que fazia parte, ou era uma continuação, ou antes, que o que acontecia lá fora, de tal forma acreditei que me misturava em tudo, era eu. Era o meu corpo e todo eu em névoa – a faca entrando devagar com o sorriso da mulher nos meus olhos – envolvendo casas, pessoas, ruas, pondo tudo a jogar às escondidas.
A pergunta podia ser sempre a mesma afinal. O que está escondido numa planície de cobre quando os pássaros levantam voo antes que a noite de veludo pese sobre os silêncios? Ou uma borboleta sob a pele da manhã em sal, uma borboleta largando um pó dourado nos sustentáculos de vidro de uma fogueira? Chegava o tempo maduro amolecendo a dureza do pensamento no rosto. Deixava-se crescer a barba e rapava-se o cabelo hirsuto, enxuto. Enganava-se a vista no calor húmido do alcatrão e respirava-se o ar ralo. Subia-me à boca o sabor estranho de ser estrangeiro a tudo. No entanto, nasci aqui, cresci olhando por janelas, vendo, olhando com urgência as coisas que tinha que nomear – um sabor mais acre, entupindo-me os canais nasais, como a água do mar num mergulho mais prolongado na musculatura dos pulmões – só que essa nomeação perdia-se algures.
Os pombos aguardam-me, as aves canoras e as carnívoras esperam-me, em voos cada vez mais concêntricos sobre a pele do tempo. Vejo uma cabeça decepada de uma rosa. Os meus dedos passam pela pele da pétala, por essa macieza de glande e penso: qual a minha cara na corola desta beleza ou serei antes um veio imperceptível a pulsar? Será o meu perfil com algumas rugas, num despropósito argiloso de engano do tempo, a rosa, ou será antes por dentro, nessa matéria contaminada que se nomeia: corpo: a bigorna do silêncio da rosa com os seus órgãos gemendo, assustados pelo excesso da temperatura? E lá fora, em todas essas árvores, com sua própria música de cordas, cabelos e braços ao vento, na sua paciência vegetal, empoeiradas de cobre; e lá fora, em todas essas ruas, e lá fora?
Sento-me com um livro ao colo, levando calmamente um cigarro por acender aos lábios. Ela dormia com o seu tronco relaxadamente transpirado nos lençóis. Eu lia algumas frases truncadas entre os barulhos, que atraíam a atenção tensa dos reflexos, e os suspiros mornos, o levantar e baixar do peito húmido, uma mão pequena empurrando delicadamente a parede fria e lisa – tantos detalhes quanto as letras do livro que retinha entre dedos, mas se a página estivesse nesse espelho de neve por pisar, iria reparar nesse infindável número de pormenores a referir?
Todos os dias, como hoje, agora, em que devagar me sento nestes degraus cobertos de pó e esqueletos de insectos, unhas arrancadas, eremitérios de aranhas à espera, à espera, à espera...que tu acordes de um sonho, de um sono – a aleta do nariz tremendo, como a chama de uma vela quando sopra uma brisa, como um sopro numa mesa afastando uma ou outra migalha que se aproxima à mão nos seus movimentos vagos – vou decifrar, vou traduzir, vou ler o levantar do sobrolho, o peito a subir num esforço geométrico, a métrica das tosses, dos pigarros, a posição do corpo agarrando a almofada, a distância entre os dois lados da fenda dos teus lábios entre murmúrios que saem pelos teus dentes assobiantes, sons sedutores, as marcas na tua pele – cicatrizes, dobras, linhas, desenhos, aqui um novo continente por desbravar, ali um mar revolto e bravo e o meu barco a ser conduzido até à fossa profunda do umbigo, vagas gigantescas sobre o meu corpo, salgando-o com salpicos para a minha cara, boca frente a boca – que percorro com os olhos. Levanto-me do degrau
pé esquerdo frente ao direito
um dois um dois
duas bocas
não de peixe mas de pessoa
a tua


– não te assustes...

É um sopro no teu rosto com palavras à toa quando a minha cabeça veio à tona da água, respirava a tua expiração, quis-te insuflar só um sonho novo da boca à floresta de alvéolos dos teus pulmões. Mas teus olhos atemorizados, não reconhecendo o homem à tua frente, abertos como uma flor ao meio-dia ou uma dama-da-noite espraiando o seu perfume com os diálogos caninos entre duas pontas da cidade – só temos, realmente, a noção da dimensão de uma cidade quando nos atinge como um espasmo, sabendo depois que nos encontramos no centro de qualquer cidade, não um grito eufórico, lascivo ou de terror, mas essa experiência de ode nocturna entre cães pedindo, de volta, a sua cidade ocupada pelos homens – abertos na extensão de uma inspiração interrompida, os teus olhos raiados de um sangue de névoa num vidro empoado, esbracejam a interrogação como um náufrago.
Talvez tenha sido demais esta aproximação ao abismo – onde estão o meu arco e as minhas flechas de caça-medos em cachos de uvas negras, a minha lança, de entraçado de caules de cereja, ponta de dente de narval e adornada com penas de ave do paraíso? – fazendo subir a vergonha à cara. Enrubescido afasto-me num impulso de molas – o eco expandindo-se por dentro do colchão:
clunc
clunc
cluncluncluncloche de la vi(ll)e clochard, dis-moi à quelle heure, à quelle seconde, minute de la minuit de la mer sur mes bras, nos meus braços, sordidamente ébrios por um perfume misturado de transpiração e álcool – ou seria mel – um barco de papel, vogando sobre a pele, para onde vai? Os pêlos entrançando a navegação, empurram-no num vaivém, desliza pelos músculos que se entesam e se retesam – estas são as tuas cordas de cânhamo, onde as velas se enraízam, como chumbo, na água turva de um charco. O barco navega no braço, contigo na proa cortando as nuvens e as ondas como uma espada de vidro numa carta inesperada. E a chuva cai, começa caindo em tuas costas arqueadas sobre o mar. Remos partem-se, algas, teus cabelos encharcados em teus ombros. Vagas gigantescas vergam os músculos que se obstinam a prenderem-se aos ossos frágeis. Ondas que encantam a tua voz, clamando que te soltes do barco, que caias num remoinho de espuma – e com o impulso do músculo do antebraço direito, o barco de papel soltou-se dos pêlos. Caiu na mesa onde o isqueiro finalizou a sua vadiviagem. Ergue-se agora um outro fumo. Agora mais de cinza que de petróleo.
Aproximei uma cadeira à cama. Ela continuava a dormir. Encostando os pés à cama, balouçava-me lentamente, observando cada parte do seu corpo em detalhes minuciosos. Era um novo mapa, um novo livro. Pela primeira vez um corpo. Um e vários cheiros, membros feridos, raspados. Um sexo torturado...mastigado...era por ali que respirava. Via seus lábios a vibrar, murmurando os sonhos enquanto dormia. Por ali ela dizia ser um corpo, não omitia a fraqueza do cansaço. Escorria devagar um líquido pastoso e avermelhado – trinquei o dióspiro – que se misturava com uma pasta argilosa que vinha por baixo juntar-se – as minhas mãos pesavam a hipótese de continuar a comer o fruto ou moldar aquele barro em gestos de oleiro. Não queria separar-me do xilofone que me amparava a respiração.

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