quarta-feira, 6 de julho de 2022

Henrique Manuel Bento Fialho - BELEZA ENTRE DESTROÇOS (posfácio a "Às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem")

           Ao pensar na mais recente poesia portuguesa ocorrem-me poucas vozes que tenham cativado pelo factor surpresa, sugerindo uma originalidade que não é, de todo, o mais fácil conseguimento no labor de um poeta. Quem leia muita poesia corre o risco da previsibilidade, mas também sabe que uma das vantagens desse risco é a qualquer momento poder ser surpreendido por um verso, por uma linguagem que ouse confrontar a ordem estabelecida mais do que prestar-lhe vassalagem.

          Fernando Machado Silva (n. 1979) é uma das vozes que me cativou desde a primeira hora, quando li o seu livro de estreia intitulado “primeira viagem” (Orfeu, 2012). Então assinalei, a propósito dessa leitura iniciática, alguns motivos de interesse vislumbrados no universo daquele livro em concreto: a deslocação da urbe para o campo, a opção pela auto-ironia em detrimento de um pessimismo de pacotilha usado por quem anda com a ruína pendurada ao pescoço, certo confessionalismo que teatralizava imagens recorrentes no tecido exigente dos chamados temas nobres.

           O que posteriormente foi ficando mais claro é a forte relação desta poesia com o conceito de viagem, desde logo explícita no título do primeiro livro, mas subsequentemente reforçada na figura do passageiro. Assim é por haver nestes poemas um vínculo indisfarçável entre vida vivida e poesia, tratando-se aqui da vida enquanto viagem cuja característica mais evidente deverá ser a da transitoriedade. À deslocação no espaço corresponde, portanto, uma deslocação no tempo, deslocação esta subsidiada pela memória e materializada, por exemplo, em vários versos onde infância e adolescência surgem como pano de fundo.

         Se os lugares geográficos aludidos indicam deslocação espacial, já os lugares da memória remetem para deslocações no tempo. É desta relação entre espaço e tempo que o poema assoma de um “longo sono”, espécie de lava expelida no decorrer de um processo de escrita eminentemente eruptivo. O próprio título desta colectânea, pedido de empréstimo a Clarice Lispector, parece pretender ironizar tal processo, associando o acto de escrever ao gesto de acordar. Sendo dócil, não deixa também esse gesto de conter em si a violência de um encontro com o “abismo da desordem”, ou seja, o plano da existência.

           A poesia de Fernando Machado Silva adopta, então, a índole vigilante de um tempo que é o da vida vivida, consubstanciando-se em conjuntos determinados pelo período a que os poemas correspondem. Não podendo chamar-se-lhe “diarística” sem incorrer no risco de uma extrema simplificação, podemos preferencialmente anotar cuidado e rigor na arrumação dos poemas em conjuntos pautados por temas e pela vibração própria dos versos. E este é, talvez, um dos aspectos mais interessantes a sublinhar, já que em nenhum momento se omite o apelo de uma respiração própria, ligada a práticas ancestrais de meditação como facilmente depreenderá o leitor do conjunto aqui coligido sob o título “para uma aprendizagem”.

           Nesta proximidade que mantém à vida, o poema não escapa às armadilhas da linguagem poética. O que o distingue da frugal anotação diarística é o poder das imagens e das metáforas que ampliam o campo semântico, desde logo introduzido no primeiro conjunto com o título oportuno “as horas para um poema”. Podemos ler todo esse conjunto como quem lê uma ars poetica, por nele ficar delimitada a disciplina de um autor que não prescinde do fulgor das trevas, passe o paradoxo, para o exercício da sua arte. A própria distribuição das palavras na página oferece ao texto uma configuração que o liberta de constrangimentos, marcando o ritmo com pausas, silêncios, vazios de que o poema nasce como das trevas nasceu a luz e dos olhos fechados em sono profundo nasce a imagem reveladora de um sonho. 

           São muitas as referências implícitas e explícitas ao longo do livro, pelo que seria fastidioso enumerá-las num apontamento de leitura que vai mais extenso do que devia. Encontramos pontos de encontro entre essas referências e os poemas, manifestações de afecto, processos de identificação. Mas encontramos também um fascínio pelo oculto, pelo esotérico, pelo mítico e até pelo místico que não são de todo comuns na nossa poesia mais recente. Não deixa de ser curioso, todavia, que tais encontros se dêem a par de uma postura contemplativa que, tendo a natureza por objecto, se nos apresenta mais arreigada à terra do que a matérias do invisível.

            Na sequência intitulada “da tristeza e do amor do mar de julho” é perceptível o modo como à sublimação da natureza corresponde um relance crítico acerca do lugar ocupado pelo homem no seio dessa natureza. Por outro lado, no conjunto excelentemente intitulado “trazer a dor à luz” parece despontar uma relação furiosa com o sagrado. De conjunto para conjunto torna-se-nos então possível construir uma narrativa que transcende já as coordenadas do tempo e do espaço, porque ela é a dos dias consumados entre uma experiência de vida e uma ideia de morte. Um título como o do poema “cinzas sobre raízes” dá bem conta deste labor que, no fundo, não mais procura do que sempre foi missão dos poetas procurar: um nome para a beleza que se move entre destroços. 

 Henrique Manuel Bento Fialho Caldas da Rainha, 21/Outubro/2019

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