quarta-feira, 27 de maio de 2020

tudo se enche de si

poema publicado no Jornal Mapa, nº 27, Maio-Julho de 2020


a tristeza abriu a sua navalha
junto ao meu pescoço e arrepanhando
o barroco dos meus cabelos
encostou o meu rosto à janela

olha como chove sem parar há dois dias
pendendo um pouco mais a desequilibrada
partilha das coisas nesta terra
o magnetismo do mais e do menos foi
a excepção que se impôs como regra
a atracção dos opostos é uma canção
                                                         romântica de embalar
são os iguais que se unem
uns aos outros
o excesso vai-se excedendo
o insuficiente por igual se acresce
a raridade depara-se com o ainda mais raro
em torno         o ódio clama por mais e quando falta
o amor mingua como a uva na parra
o deserto alastra as suas areias
                                               pelas planícies esquecidas de árvores
e a água engole os campos incapazes
de a sorver         tanto que os vermes se desenterram
em pânico para se afogarem
sob a bátega e arroios de lama

há uma lei que aqui se oculta como a beleza
sob a podridão das coisas         tudo
se enche de si justo ao limiar
depois         como uma criança nos seus primeiros
passos transportando um prato cheio de papas
          vira-se o mundo do avesso         ou noutras
palavras para os cinéfilos
                                      quando Uma e Lucy se defrontam no pequeno
jardim nevado nas traseiras do clube
a tensão         como sabes         cresce quando
o silêncio é ri-tmi-ca-men-te cortado
pelo som de madeira a bater em madeira
e água a cair
é esse improvisado balde de bambu
que se enche e se esvazia
                                       uma e outra vez
                                                               a lei que rege esta criação

sim         disse-lhe         mas não sejas tão dramática
guarda a navalha
deixa que te embale a fatalidade
e te mostre que há sol ainda
quando a minha língua abrir a escuridão

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