segunda-feira, 6 de abril de 2020

estar à superfície

é possível que a memória me evada na corrente
de ar entre dois pensamentos
as noites brancas da cidade incendiaram
demasiadas páginas escritas uma e outra vez
no corpo de uma vida         permite
peço-te         permaneça intacta a paixão do olhar
o teu rosto à luz de cabeceira
onde o poema faz sombra à máquina

quando era criança amedrontava-me
com o mundo invisível sob os pés
o infinito das paredes do quarto engolido pelo escuro
conhecido pelas pontas dos dedos e
os olhos muito abertos para o nada
ou o vazio pesado das respirações
cheias do sono tranquilo dos irmãos
e de uma lonjura tão próxima que arrepilava
o rugido cavernoso do pai enquanto monstro
das trevas absolutas e a solidão de ser
o único desperto para o medo

depois conheci o fundo         exalava
deixava-me imergir até à areia enrugada
e o pulmão arder de azul
e tudo gritar que voltasse por mais
pacifico fosse o encosto no útero do mar

reconheço a lição do corpo
numa estética como um rizoma de nervos
mais pregnante que a razão tatuada
tenho ainda o olhar aberto e o medo
é hoje como um cotão ao canto do quarto
iluminado pelo seio solar da noite
tudo subiu à pele nesse dia dedicado
à intimidade da carne exposta
ao terror da criança

a morte avança como nós pela água adentro
e as tuas mãos relembram-me a fragilidade
de estar à superfície

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