sexta-feira, 25 de maio de 2018

Nuno Bragança - sobre dor, escrita e vida

"«Jed, cada pessoa humana sofre que nem se imagina. Cada pessoa, não falo em manequins ou bonecos de corda. E é preciso que um sofrimento dê às vezes ocasião a que quem sofreu despeje toda a dor de muita gente num livro ou quadro ou sinfonia ou no raio que parta. É a partir desse dar forma ao que nos angustia que nasce a esperança e pode reencontrar-se a pista da grande alegria perdida, a alegria com que cada pessoa vem ao mundo. É o riso do puto contra as brutalidades que os adultos praticam e deixam praticar. Lembra-te daquelas fotos do Picasso, em shorts e a rir-se em cada ruga funda. Por detrás do riso do Picasso há toda a tanta treva que os humanos atravessam. O bombardeamento de Guernica e a raiva do Picasso conseguiram uma profecia. Toda a criação é profética. É preciso conseguir juntar a febre de escrever à aprendizagem da maneira de trabalhar na escrita. Tu não podes estar simultaneamente apaixonado e escreveres dessa paixão. Quanto ao resto, todo o escritor só conta sempre uma só história: a do que ele viveu e morreu, viu viver e viu morrer. Falo de quem escreve com sangue e não a tira-linhas e compasso.» Calei-me, sem fôlego. Falara sem nenhuma reflexão."


in Nuno Bragança, Square Tolstoi, Lisboa, Assírio & Alvim, 1981: 108-109

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