sábado, 2 de dezembro de 2017

Galway Kinnell - Cara estranha existindo na memória à beira do Juniata azul (conclusão)


5

Nesta margem – a nossa margem –
da desaparecida água azul, tu deitas-te,
chorando no teu leito, escutando esses
mínimos
temíveis estrondos
de despedidas trespassando os bosques virginais no crepúsculo.

Também eu comi
as refeições do litoral negro. No próprio
colchão do tempo, onde um trapo com a forma de um corpo
está deitado junto a um trapo – sepulturas
para onde são lançados
por aqueles que vieram antes,
amantes,
ou amigos queridos,
ou estranhos,
que aqui amaram,
ou aqui enterraram os seus dentes de pesadelo,
ou afugentaram os seus engates,
o sagrado sino tine a cada hora para morrer contra a cidade de folha de vidro –

deito-me sem dormir, lembrando
o corpo maduro
da galinha, o calor da carne da galinha
assustando as minhas mãos,
todos os seus desejos,
todos os seus cheiros de morte,
florescendo uma vez mais na noite estrelada. E depois a espera –

não longa, concedo, mas por toda a minha vida –
pelo suave, pequeno
baque do seu retorno entre as pedras.

Poderá alguma vez ser verdade –
todos os corpos, um só corpo, uma luz
a união feita das trevas de cada um?


6

Caro Galway,
                     Não tenho a quem recorrer porque Deus é meu inimigo. Ele deu-me a luxúria e o prazer e cortou-me as mãos. O meu cérebro está sufocado com o seu sangue. Perguntei porque hei-de amar este corpo que temo. Ele disse, É tão magnificente que nunca mais pode ser perfilado – meu caixão, querido e brilhante. Nunca te orgulhaste tanto de uma coisa que a quisesses para a tua presa? A sua voz estrangula a minha garganta. Alma de áspides, senhor e captor: ele quer matar-me. Perdoe a minha cegueira.  
A sua, nas trevas,
Virginia

7

Cara estranha
existindo na memória à beira do Juniata azul,
estas cartas
através do tempo creio eu
serão a única coisa que saberemos um do outro.

Tão pouco o que cada um é desfia-se a si mesmo pelo olho
de um espaço vazio.

Esqueça.
O eu não é o pior de tudo.
Que as nossas cicatrizes se apaixonem.


in Galway Kinnell, The Book of Nightmares, Boston & New York, Houghton Mifflin Company, 1971: 29-31.

Sem comentários: