50) A denegação
dos tipos, tanto individuais como colectivos, é uma consequência do
imperativo do anti-racismo que se nos tornou necessária assumir.
Pobre necessidade, embora, que nos obriga a apagar esses ares de
família, essas semelhanças vagas mas persistentes, essas misturas
comoventes ou graciosas de efeitos da genética, da moda, das
divisões sociais, das idades, e no meio das quais emerge com um
maior relevo o incomparável de cada um(a).
51) Grão de
beleza: a língua francesa chama assim essas partículas castanhas ou
negras, ligeiramente salientes, que fazendo por vezes (e sobre alguns
tantas vezes) um ponto, marca ou mancha sobre a pele. No lugar de
colorirem a pele, fazem sobressair a brancura, é, pelo menos, como
gostamos de dizer no tempo em que a neve ou o leite servem de
comparativo, por excelência, para a pele das mulheres. Elas surgem
então, necessariamente, como “moscas” de veludo sobre as
bochechas ou sobre a garganta. Hoje em dia, apreciam-se mais as peles
morenas, douradas ou bronzeadas, mas o grão de beleza mantém o seu
atractivo: assinala a pele, baliza o seu lugar e configura-a, conduz
o olho e age sobre ele como uma nota de desejo. Por um momento,
gostar-se-ia de dizer que o grão de beleza é uma semente de desejo,
uma minúscula elevação de intensidade, um corpúsculo no qual o
tom mais escuro concentra uma energia do corpo inteiro, como
igualmente faz a ponta do seio.
52) O corpo segue
por espasmos, contracções e relaxamentos, dobras, desdobramentos,
enodoamentos e desvinculações, torções, sobressaltos, soluços,
descargas eléctricas, relaxamentos, contracções, tremores,
choques, arrepios, erecções, súbitos saltos, começos. Corpo que
se eleva, se abisma, se atormenta, se despele e se esburaca, se
dispersa, pulula, esguicha quer pus ou sangre, humedece ou seca ou
supura, ronca, geme, murmura, estoura e suspira.
53) O corpo produz
a auto-imunidade da alma, no sentido técnico desse termo médico:
ele defende a alma contra si mesma, impede que ela seja completamente
absorvida pela íntima espiritualidade. Ele provoca uma rejeição da
alma pela própria alma.
54) O corpo, a
pele: tudo o resto é literatura anatómica, fisiológica e médica.
Músculos, tendões, nervos e ossos, humores, glândulas e órgãos
são ficções cognitivas. São formalismos funcionalistas. Mas a
verdade é a pele. Está na pele, é feita pele: autêntico campo
exposto, toda virada para o exterior enquanto, simultaneamente,
envolve o interior, um saco repleto de borborismos e fetidez. A pele
toca e faz-se tocar. A pele acaricia e afaga, magoa-se, arranha-se,
comicha. É irritável e excitável. Ela apanha o sol, o frio e o
calor, o vento, a chuva, ela inscreve marcas no interior – rugas,
manchas, verrugas, escoriações – e marcas no exterior, por vezes
as mesmas ou então fendas, cicatrizes, queimaduras, cortes.
55) Corpo oxímoro
polimorfo: dentro/fora, matéria/forma, homo/heterológico,
auto/alónimo, crescer/excrescer, meu/nada1.
56) Corpo
indexado: há alguém, há alguém que se esconde, que mostra o fim
da orelha, alguém ou alguma, qualquer coisa ou qualquer signo,
qualquer causa ou qualquer efeito, há aí uma qualquer maneira de
“aí”, de “lá”, tão próximo, assaz longe…
57) Corpo tocado,
tocante, frágil, vulnerável, sempre mudando, fugitivo, esquivo,
evanescente sob a carícia ou a batida, corpo sem casca, pobre pele
estendida sobre uma caverna onde flutua a nossa sombra…
58) Porquê 58
indícios? Porque 5 + 8 = aos membros do corpo, braços, pernas e
cabeça e as 8 regiões do corpo: as costas, o ventre, o crânio, o
rosto, as nádegas, o sexo, o ânus, a garganta. Ou então porque 5 +
8 = 13 e 13 = 1&3, 1 valendo pela unidade (um corpo) e 3 valendo
pela incessante agitação e transformação que circula, se divisa e
se excita entre a matéria do corpo, sua alma e seu espírito… Ou
melhor ainda: o arcano XIII do tarôt designa a morte, e a morte
incorpora o corpo no indestrutível corpo universal das lamas ou dos
ciclos químicos, dos aquecimentos e das explosões estelares…
59) Surge, por
consequência, o quinquagésimo nono índice, o supranumerário, o
excedentário – o sexual: os corpos são sexuados. Não existe
corpo unissexo, como hoje em dia se diz de certas roupas. Um corpo é,
pelo contrário, de parte a parte, também um sexo: também seios,
uma verga, uma vulva, testículos, ovários, características ósseas,
morfológicas, fisiológicas, um tipo de cromossoma. O corpo é
sexuado por essência. Essa essência determina-se como a essência
de uma relação de uma a outra essência. O corpo determina-se assim
como essencialmente relação, ou em relação. O corpo relaciona-se
com o ou ao corpo do outro sexo. Nessa relação, haverá uma sua
corporeidade pois afecta o sexo no limite: ela goza, ou seja o corpo
é sacudido em todo o seu redor. Cada uma das suas zonas, gozando por
si, emite para o exterior a mesma vivacidade. A isso chama-se alma.
Mas o mais das vezes isso deixa-se ficar preso pelo espasmo, no
soluço ou no suspiro. O finito e o infinito cruzam-se, trocam-se num
instante. Cada um dos sexos pode ocupar a posição do finito ou do
infinito.
1
Impossível de manter, aqui, o jogo proposto por Nancy entre mien
e rien.
Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).
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