sexta-feira, 24 de março de 2017

Jean-Luc Nancy - 58 indícios sobre o corpo (conclusão)




50) A denegação dos tipos, tanto individuais como colectivos, é uma consequência do imperativo do anti-racismo que se nos tornou necessária assumir. Pobre necessidade, embora, que nos obriga a apagar esses ares de família, essas semelhanças vagas mas persistentes, essas misturas comoventes ou graciosas de efeitos da genética, da moda, das divisões sociais, das idades, e no meio das quais emerge com um maior relevo o incomparável de cada um(a).

51) Grão de beleza: a língua francesa chama assim essas partículas castanhas ou negras, ligeiramente salientes, que fazendo por vezes (e sobre alguns tantas vezes) um ponto, marca ou mancha sobre a pele. No lugar de colorirem a pele, fazem sobressair a brancura, é, pelo menos, como gostamos de dizer no tempo em que a neve ou o leite servem de comparativo, por excelência, para a pele das mulheres. Elas surgem então, necessariamente, como “moscas” de veludo sobre as bochechas ou sobre a garganta. Hoje em dia, apreciam-se mais as peles morenas, douradas ou bronzeadas, mas o grão de beleza mantém o seu atractivo: assinala a pele, baliza o seu lugar e configura-a, conduz o olho e age sobre ele como uma nota de desejo. Por um momento, gostar-se-ia de dizer que o grão de beleza é uma semente de desejo, uma minúscula elevação de intensidade, um corpúsculo no qual o tom mais escuro concentra uma energia do corpo inteiro, como igualmente faz a ponta do seio.

52) O corpo segue por espasmos, contracções e relaxamentos, dobras, desdobramentos, enodoamentos e desvinculações, torções, sobressaltos, soluços, descargas eléctricas, relaxamentos, contracções, tremores, choques, arrepios, erecções, súbitos saltos, começos. Corpo que se eleva, se abisma, se atormenta, se despele e se esburaca, se dispersa, pulula, esguicha quer pus ou sangre, humedece ou seca ou supura, ronca, geme, murmura, estoura e suspira.

53) O corpo produz a auto-imunidade da alma, no sentido técnico desse termo médico: ele defende a alma contra si mesma, impede que ela seja completamente absorvida pela íntima espiritualidade. Ele provoca uma rejeição da alma pela própria alma.

54) O corpo, a pele: tudo o resto é literatura anatómica, fisiológica e médica. Músculos, tendões, nervos e ossos, humores, glândulas e órgãos são ficções cognitivas. São formalismos funcionalistas. Mas a verdade é a pele. Está na pele, é feita pele: autêntico campo exposto, toda virada para o exterior enquanto, simultaneamente, envolve o interior, um saco repleto de borborismos e fetidez. A pele toca e faz-se tocar. A pele acaricia e afaga, magoa-se, arranha-se, comicha. É irritável e excitável. Ela apanha o sol, o frio e o calor, o vento, a chuva, ela inscreve marcas no interior – rugas, manchas, verrugas, escoriações – e marcas no exterior, por vezes as mesmas ou então fendas, cicatrizes, queimaduras, cortes.

55) Corpo oxímoro polimorfo: dentro/fora, matéria/forma, homo/heterológico, auto/alónimo, crescer/excrescer, meu/nada1.

56) Corpo indexado: há alguém, há alguém que se esconde, que mostra o fim da orelha, alguém ou alguma, qualquer coisa ou qualquer signo, qualquer causa ou qualquer efeito, há aí uma qualquer maneira de “aí”, de “lá”, tão próximo, assaz longe…

57) Corpo tocado, tocante, frágil, vulnerável, sempre mudando, fugitivo, esquivo, evanescente sob a carícia ou a batida, corpo sem casca, pobre pele estendida sobre uma caverna onde flutua a nossa sombra…

58) Porquê 58 indícios? Porque 5 + 8 = aos membros do corpo, braços, pernas e cabeça e as 8 regiões do corpo: as costas, o ventre, o crânio, o rosto, as nádegas, o sexo, o ânus, a garganta. Ou então porque 5 + 8 = 13 e 13 = 1&3, 1 valendo pela unidade (um corpo) e 3 valendo pela incessante agitação e transformação que circula, se divisa e se excita entre a matéria do corpo, sua alma e seu espírito… Ou melhor ainda: o arcano XIII do tarôt designa a morte, e a morte incorpora o corpo no indestrutível corpo universal das lamas ou dos ciclos químicos, dos aquecimentos e das explosões estelares…

59) Surge, por consequência, o quinquagésimo nono índice, o supranumerário, o excedentário – o sexual: os corpos são sexuados. Não existe corpo unissexo, como hoje em dia se diz de certas roupas. Um corpo é, pelo contrário, de parte a parte, também um sexo: também seios, uma verga, uma vulva, testículos, ovários, características ósseas, morfológicas, fisiológicas, um tipo de cromossoma. O corpo é sexuado por essência. Essa essência determina-se como a essência de uma relação de uma a outra essência. O corpo determina-se assim como essencialmente relação, ou em relação. O corpo relaciona-se com o ou ao corpo do outro sexo. Nessa relação, haverá uma sua corporeidade pois afecta o sexo no limite: ela goza, ou seja o corpo é sacudido em todo o seu redor. Cada uma das suas zonas, gozando por si, emite para o exterior a mesma vivacidade. A isso chama-se alma. Mas o mais das vezes isso deixa-se ficar preso pelo espasmo, no soluço ou no suspiro. O finito e o infinito cruzam-se, trocam-se num instante. Cada um dos sexos pode ocupar a posição do finito ou do infinito.

1 Impossível de manter, aqui, o jogo proposto por Nancy entre mien e rien.

Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).

Sem comentários: