20) Os corpos são
diferenças. São, portanto, forças. Os espíritos não são forças:
são identidades. Um corpo é uma força diferente de muitas outras.
Um homem contra uma árvore, um cão em frente de um lagarto. Uma
baleia e uma lula. Uma montanha e um glaciar. Tu e eu.
21) O corpo é uma
diferença. Como é uma diferença com todos os outros corpos – uma
vez que os espíritos são idênticos – ele nunca pára de se
diferenciar. Ele difere igualmente de si. Como pensar, junto a um e a
outro, o bebé e o velho?
22) Diferentes, os
corpos são, de qualquer modo, disformes. Um corpo perfeitamente
formado é um corpo enfadonho, indiscreto no mundo dos corpos,
inaceitável. É um projecto, não é um corpo.
23) Do corpo
destaca-se a cabeça, sem que seja necessário decapitá-la. A cabeça
está, por si mesma, destacada, deduzida. O corpo é um conjunto, ele
articula-se e compõe-se, organiza-se. A cabeça é feita de buracos,
na qual o centro vazio representa muito bem o espírito, o ponto, a
infinita concentração em si. Pupilas, narinas, boca, orelhas, são
buracos, evasões cavadas fora do corpo. Pondo de parte os outros
buracos, esses de debaixo, esta concentração de orifícios depende
do corpo por um fino e frágil canal, o pescoço cruzado pela medula
e vários vasos prontos a inchar ou a se romper. Uma fina ligação
que conecta, numa dobra, o corpo complexo à cabeça simples.
Nenhuns músculos nela, nada senão tendões e ossos de substância
mole e cinzenta, circuitos, sinapses.
24) O corpo sem
cabeça está fechado sobre si mesmo. Conecta os músculos entre
eles, aperta os órgãos uns contra os outros. A cabeça é simples,
combinação de alvéolos e de líquidos dentro de uma tripla
envolvência (enveloppe).
25) Se o homem foi
feito à imagem de Deus, então Deus tem um corpo. Talvez seja ele
mesmo um corpo, ou o corpo eminente entre todos. O corpo de
pensamento dos corpos.
26) Prisão ou
Deus, não há meio: envolvente selado ou envolvente aberto. Cadáver
ou glória, dobra ou desdobra.
27) Os corpos
cruzam-se, raspam, pressionam, enlaçam-se ou chocam: tantos signos
que se fazem, tantos sinais, endereçamentos, avisos que nenhum
sentido definido alguma vez pode saturar. Os corpos fazem do sentido
em todo o sentido. É por isso que o corpo parece tomar o seu sentido
somente quando morre, congela. E daí, talvez, que interpretemos o
corpo como tumba da alma. Na realidade, o corpo não pára de se
mover. A morte congela o movimento que se deixa ir e renuncia a
moção. O corpo é a moção da alma.
28) Um corpo: uma
alma lisa ou enrugada, gorda ou magra, calva ou peluda, uma alma com
inchaços ou feridas, uma alma que dança ou que mergulha, uma alma
calosa, húmida, caída por terra…
29) Um corpo, uns
corpos: não pode haver um só corpo, os corpos carregam a diferença.
São forças postas e tensionadas umas contra as outras. O “contra”
(ao encontro, de encontro, “tudo contra”) é a categoria maior do
corpo. Ou seja, o jogo das diferenças, os contrastes, as
resistências, as tomadas, as penetrações, as repulsões, as
densidades, os pesos e medidas. O meu corpo existe contra o tecido
das minhas roupas, os vapores do ar que ele respira, o brilho das
luzes ou os afloramentos1
das trevas.
1
Optámos traduzir “frôlements”, que significa um toque
rápido, ligeiro e superficial, por “afloramento” para manter o
sentido de toque, como também para acrescentar o sentido de alguma
coisa que brota, neste caso da/na escuridão.
Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).
Sem comentários:
Enviar um comentário