domingo, 26 de fevereiro de 2017

Jean-Luc Nancy - 58 indícios sobre o corpo (cont.)



20) Os corpos são diferenças. São, portanto, forças. Os espíritos não são forças: são identidades. Um corpo é uma força diferente de muitas outras. Um homem contra uma árvore, um cão em frente de um lagarto. Uma baleia e uma lula. Uma montanha e um glaciar. Tu e eu.

21) O corpo é uma diferença. Como é uma diferença com todos os outros corpos – uma vez que os espíritos são idênticos – ele nunca pára de se diferenciar. Ele difere igualmente de si. Como pensar, junto a um e a outro, o bebé e o velho?

22) Diferentes, os corpos são, de qualquer modo, disformes. Um corpo perfeitamente formado é um corpo enfadonho, indiscreto no mundo dos corpos, inaceitável. É um projecto, não é um corpo.

23) Do corpo destaca-se a cabeça, sem que seja necessário decapitá-la. A cabeça está, por si mesma, destacada, deduzida. O corpo é um conjunto, ele articula-se e compõe-se, organiza-se. A cabeça é feita de buracos, na qual o centro vazio representa muito bem o espírito, o ponto, a infinita concentração em si. Pupilas, narinas, boca, orelhas, são buracos, evasões cavadas fora do corpo. Pondo de parte os outros buracos, esses de debaixo, esta concentração de orifícios depende do corpo por um fino e frágil canal, o pescoço cruzado pela medula e vários vasos prontos a inchar ou a se romper. Uma fina ligação que conecta, numa dobra, o corpo complexo à cabeça simples. Nenhuns músculos nela, nada senão tendões e ossos de substância mole e cinzenta, circuitos, sinapses.

24) O corpo sem cabeça está fechado sobre si mesmo. Conecta os músculos entre eles, aperta os órgãos uns contra os outros. A cabeça é simples, combinação de alvéolos e de líquidos dentro de uma tripla envolvência (enveloppe).

25) Se o homem foi feito à imagem de Deus, então Deus tem um corpo. Talvez seja ele mesmo um corpo, ou o corpo eminente entre todos. O corpo de pensamento dos corpos.

26) Prisão ou Deus, não há meio: envolvente selado ou envolvente aberto. Cadáver ou glória, dobra ou desdobra.

27) Os corpos cruzam-se, raspam, pressionam, enlaçam-se ou chocam: tantos signos que se fazem, tantos sinais, endereçamentos, avisos que nenhum sentido definido alguma vez pode saturar. Os corpos fazem do sentido em todo o sentido. É por isso que o corpo parece tomar o seu sentido somente quando morre, congela. E daí, talvez, que interpretemos o corpo como tumba da alma. Na realidade, o corpo não pára de se mover. A morte congela o movimento que se deixa ir e renuncia a moção. O corpo é a moção da alma.

28) Um corpo: uma alma lisa ou enrugada, gorda ou magra, calva ou peluda, uma alma com inchaços ou feridas, uma alma que dança ou que mergulha, uma alma calosa, húmida, caída por terra…

29) Um corpo, uns corpos: não pode haver um só corpo, os corpos carregam a diferença. São forças postas e tensionadas umas contra as outras. O “contra” (ao encontro, de encontro, “tudo contra”) é a categoria maior do corpo. Ou seja, o jogo das diferenças, os contrastes, as resistências, as tomadas, as penetrações, as repulsões, as densidades, os pesos e medidas. O meu corpo existe contra o tecido das minhas roupas, os vapores do ar que ele respira, o brilho das luzes ou os afloramentos1 das trevas.


1 Optámos traduzir “frôlements”, que significa um toque rápido, ligeiro e superficial, por “afloramento” para manter o sentido de toque, como também para acrescentar o sentido de alguma coisa que brota, neste caso da/na escuridão.

Jean-Luc Nancy in Corpus. Paris, Métailié, col. Sciences humaines, édition revue et complétée 2006 (2000).

Sem comentários: