terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Carta de Hamburgo VI

das lágrimas pouco sabes
o que fizeste       a ternura
soçobrou nos braços do inverno
como os escombros de uma noite
se alojam nos músculos

desligas o ruído que avisa
a vinda do dia antes do amanhecer
todas dormem ainda o sono justo      mal dão
conta do teu despertar      a cada uma
deixas uma carícia permites à mão a linguagem
do afecto      há ainda uma força que te enleva      suavemente
fechas a porta és agora uma máquina cortando pela cidade e
o frio     encapuzado segues como um cenobita do capital

vestido de negro viúvo de futuro serves o
pequeno-almoço à ingratidão
à usura e indelicadeza que sabem teres
declinado os sonhos em troco de independência
a cada chamada de atenção indevida reconheces
o prazer no rosto de quem te segura
pelos fios e te enlaça um nó corrediço
e algo freme da raiz dos dentes aos neurónios dos dedos

quando na rua cheiras o óleo e a humidade da beira-rio
sentes a raiva sedimentar-se nas tuas pernas
como a lama do Elba e metade do teu coração
ajoelha-se como o ramo
velho sob o peso da neve e gelo e
soluça que partas por esse rio acima
pedras nos bolsos ou cabeça no horizonte para os lados
do sol-pôr enquanto a outra metade alocada a três vidas
sopra uma brisa ao dente de leão do teu pensamento
e embala a ira     o desgosto     amolece a máquina

pelo caminho a força que te enleva das metades faz
um único para todas as metáforas e a carne     pelo canto
do olho deslindas ainda a secreta alegria de amar e ser
amado nos saltos em ser
cheirado nos beijos no olhar silenciado
no meio dele as lágrimas e a ternura reencontradas
o inverno passa como só mais uma estação na vida

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