quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Witold Gombrowicz



Autor: Witold Gombrowicz
Título: Ferdydurke
Editora: 7 Nós
Tradução: Maja Marek e Júlio do Carmo Gomes

          Já noutro texto tinha afirmado que o que realmente determinava a infância não era a inocência mas bem essa queda no espanto dado pelo mundo que nos envolve, um espanto que nos emudece mas cujo obscuro sentido é apercebido, entendido, compreendido, com todo o nosso corpo, significando isto que não há, nesse momento, qualquer separação entre o que é corporal e o que é incorporal e o sentido, na verdade, não é já dado mas produzido nesse encontro. À medida que conquistamos e somos conquistados pela linguagem a íntima proximidade ao mundo elide-se, o mundo afasta-se, abre-se um abismo que engole todo o sentido outrora produzido ou a ser. A questão que todos deveríamos fazer-nos seria, portanto, como guardar para mim o espanto enquanto adquiro uma linguagem; e como guardar esse espanto da maravilha no meio de tanto horror? Por outras palavras, como posso guardar essa parte selvagem da criança – entendendo selvagem não no sentido de uma pré-história do homem, nem no sentido rousseauísta, ao invés aquilo que escapa a qualquer normalização, organização, relação de poder – enquanto sou engolido por tudo aquilo que nos deforma essa parte selvagem? São estas questões que a obra de Witold Gombrowicz me leva a pensar, exemplarmente levantas neste seu primeiro romance “Ferdydurke”.
          Nascido na Polónia em 1904, morrerá em França em 1969, tornando-se conhecido e reconhecido como uma das mais importantes vozes do modernismo mundial somente nos últimos anos da sua vida. Entretanto, faz o liceu e forma-se em Direito, após o qual empreende algumas viagens, uma delas na aurora da IIª Guerra Mundial para a Argentina onde ficará até 1963. Toda a sua vida foi dedicada à escrita, tendo vivido a maior parte da sua vida na quase extrema pobreza. Escreveu de uma forma singular como um verdadeiro iconoclasta, não se vergando a qualquer escola literária, num tom cáustico, da mais crua crítica à sociedade em qualquer dos seus formatos, político, religioso, cultural. A sua obra parece votada à destruição da força da Forma e seus mecanismos na construção do Homem, uma construção que é um amontoado de máscaras como ideia do que é o Homem, mas afastando-o sempre da sua real concretização; e todo o seu plano estratégico está já esboçado neste “Ferdydurke”.
          Difícil será não nos rirmos com a aventura do protagonista, o qual, tendo já trinta anos, é forçado por um professor de soberba venalidade a retornar para a escola. Ele é já um homem maduro, com a sua linguagem, com o seu mundo, porém todos o vêem como uma criança ignorante do que é, justamente, o mundo, o comportamento a ter-se perante os outros. Assim, impossibilitado de reagir pela mais absurda das situações, é projectado numa micro-sociedade – o novo quarto onde mora na casa de uma família que o acolhe, o da escola e o de uma outra família da alta burguesia – que, na verdade, é o retrato da Polónia dos anos 20-30, ou mesmo de toda a sociedade, com suas estruturas hierárquicas, suas falsas e hipócritas relações, essa enormíssima parada de máscaras. As aventuras são hilariantes pelo absurdo, desde o choque da primeira paixão, aos combates pela honra através da mais horrível careta que se pode produzir como meio de cristalizar a forma de uma moral.
          “Ferdydurke” foi só o princípio, há que ler de seguida “Pornografia”, “Cosmos”, “Morte a Dante”, o seu texto no volume “Contra os Poetas”, “Curso de Filosofia em seis horas e um quarto”, todos eles editados em português, uma pequena parte de uma importante obra que culmina nos seus “Diários”, que talvez nunca será traduzido infelizmente.

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