quinta-feira, 30 de maio de 2013

Henri Michaux





Título: Nós dois ainda
Autor: Henri Michaux
Editora: Bonecos Rebeldes
Tradução: Rui Caeiro

          Nem sempre os melhores poemas de amor se escrevem no furor da paixão – e não afirmo, peremptoriamente, com um pesado e soturno «nenhum poema», porque ainda me falta muito a ler. E nem sempre, ainda ao abrigo da salvaguarda anterior, as palavras utilizadas são essas de uma melíflua tendência, o mais das vezes adolescente, do abuso da metáfora floral ou da fauna – oh minha flor, oh minha corça, etc. Tudo nos leva a crer que se produzem, ou na perda, ou na ilusão de haver uma «coisa amada». A dedicatória, no fundo, marca o lugar vazio da ausência da «coisa amada», tanto mais ausente que se a quer e, enfim ou por fim, se torna o mais presente possível, encabeçando a folha, habitando nos espaços entre as palavras, como um fantasma. A «coisa amada» é a respiração inspirada que assiste os pulmões daquele que escreve o poema; e nunca Eros e Tanatos se siamisam quanto num poema de amor dedicado àquela ou àquele que morreu.
          “Nós dois ainda” será, para todos os efeitos, esse e o (único) grande poema de amor de Henri Michaux (1899-1984) e um caso singular na extensa obra deste poeta e pintor belga, naturalizado francês. Tendo começado a escrever, conta-se talvez como anedota, um traço mais à sua pouco conhecida vida, após uma aposta falhada, bem como assoberbado pela obra do maldito Lautréamont, Michaux foi criando uma obra à margem de todas as correntes vanguardistas do início do século XX, tendo partilhado com muitas das suas figuras a aventura que os fez conhecidos, em especial o grupo desfileirado surrealista Le Grand Jeu. Exemplo comprovativo da sua passagem ao lado, ele que vinha publicando desde os anos 20, foi o texto-conferência de André Gide, em 1942, “Descubramos Henri Michaux”. Homem reservado – não devia gostar da exposição pública, o pavonear de tantos artistas, mas também devido à sua frágil saúde, do seu frágil coração, ele que nasceu esburacado como nos diz em “Equador” – e retirado, de retiros exteriores e interiores, grande viajante por todo o mundo, como igualmente pelas planícies e desertos interiores de si levadas a cabo, no extremo cuidado da experimentação, com várias drogas, malgrado a saúde.
          A sua grande luta, expressa ao longo da sua obra escrita e patente na obra plástica, foi o absurdo da realidade, a crueldade com que nos aflige, os obstáculos impeditivos de se chegar ao fulgor da vida. Talvez por isso “Nós dois ainda” seja um caso singular e pressentido pelo autor, pois retira o poema de circulação o qual só é republicado após a sua morte. É que neste poema, assim parece, Michaux é vencido pela realidade, embora se reconheçam os traços do seu estilo. O poema trata da sua experiência de perda da sua esposa, vítima de um incêndio; uma morte, um tal excesso de realidade que, como diz o tradutor deste poema, Rui Caeiro, o poeta tem de exorcizar, “com um canto depurado, nu, sem floreados literários, onde toda a retórica é posta de parte: [pois] a morte não precisa de retórica” (p. 27). Ela desapareceu do “filme desta terra” diz Michaux; e nem teve “tempo para dizer adeus (…) para uma promessa” (p. 41). Este é um poema em que o amor confronta a morte com as mesmas armas.
          A culminar o volume, uma reedição do já esgotado pela &etc, encontra-se a conferência “A verdadeira poesia faz-se contra a poesia”, proferida em 1936 na cidade de Buenos Aires, de leitura importante para os interessados nestas questões e que pode ser acompanhada pela leitura do volume editado pela Antígona, “Contra os poetas”, com discursos de Benjamin Péret e Witold Gombrowicz.

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