quinta-feira, 2 de maio de 2013

Juan Ramón Jiménez



Autor: Juan Ramón Jiménez
Título: Platero e Eu
Editora: Biblioteca editores Independentes (Cotovia)
Tradução: Luís Lima Barreto

          A nossa cultura está prenhe de imagens de inocência e aquelas que de imediato nos ocorrem, quase sempre, são as crianças, por um lado e, por outro, os envolvidos em casos de justiça. Não nos podemos esquecer que estas duas imagens se associam num só evento, esse terrível “Massacre dos Inocentes” mandado executar por Herodes e bastas vezes representado na pintura – por Rubens, por exemplo – ou na literatura – pelo poeta W.H. Auden. Ora, não se assustem que não irei tratar desse assunto; o que me interessa é a questão da inocência tal como me levou a pensar este livrinho de Juan Ramón Jiménez (1881-1956), “Platero e Eu”.
          Primeiro, o que é este livro? É um dos mais belos relatos de uma certa Andaluzia – a do início do século XX – muito rural e pobre, realizada de um modo peculiar evitando qualquer tomada impressionista de um naturalismo ou realismo. Caminhamos pelo campo poeirento e temos acesso ao retrato de Moguer, aldeia natal do poeta espanhol, através da relação que Jiménez estabelece com o seu burro Platero, a qual é descrita episodicamente num extenso painel vivo. Cada episódio é uma entrada no mundo por uma das suas diversas portas e janelas; Jiménez e Platero calcorreiam o mundo todo, que é Moguer, no espaço ínfimo de um fragmento desse mundo, com as suas paisagens e os corpos que as habitam. E aquilo que Jiménez nos parece querer dizer (em parte) é talvez o seguinte: chegamos sozinhos ao mundo, mas só o reconhecemos pelo que é, ou o que nos oferece, quando acompanhados por uma testemunha silenciosa que apela o nosso testemunho do mundo, até que partamos como chegámos, primeiro um, depois o outro. A testemunha é-o duplamente, por si e pelo outro, seu confidente. Mas o que se testemunha?
          Eis que chegamos à inocência, que nada tem a ver com moral ou justiça, ou mesmo uma idade, embora a infância tenha qualquer coisa a dizer. A inocência é o estado permanente de deslumbramento com o mundo, que pode reconhecer o bem e o mal mas está bem para lá dessas categorias, é um estado afectivo amoral, o ressoar da vida pelas coisas. A razão pela qual a criança nos parece mais inocente do que um adulto tem a ver com o mutismo da infância. O mundo está tão perto de si, o brilho, o fascínio, o deslumbre é tal que a linguagem não pode desempenhar o seu papel, o de afastar, limitar, fazer o horizonte. Todavia, aquele que já adquiriu a linguagem e, no entanto, não perdeu o seu lugar, caminhando sabendo-se sempre no horizonte, mantendo, por isso mesmo, o mundo perto de si, ou seja, deslumbrando-se ainda e sempre – aqui o poeta Jiménez – esse faz-se sempre acompanhar de uma testemunha, Platero, não para autenticar a veracidade, mas para que brilhe com o mundo. O estranho, aqui, é que a testemunha é também quem dá a ver. Jiménez pode deslumbrar-se e mostrar a Platero, sim, todavia só o pode fazer porque Platero é o mundo que dá a ver(-se) em tudo e por onde passa e no que faz, é ele, na verdade, quem ofusca Jiménez ou mostra o brilho do mundo – não fosse ele Platero, de prata – e o poeta narra, re-cita o poema do mundo a quem o cega, oh tão inocentemente.
          É certo que não andamos propriamente em tempos luminosos e mais parece que o mundo foi trocado por um cenário que já viu melhores dias, não parecendo que o venham a tirar – começou ainda há pouco mais um reality show, não é verdade? – mas eu sei que o mundo ainda aí está e dizem-me já não ter idade para ser criança. Acho que o vou mostrar à Serra, a minha rafeira preta e barbuda, a noite de todos os meus dias.

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