sábado, 5 de janeiro de 2013

Mikhaíl Bulgákov


Título: A Guarda Branca
Autor: Mikhaíl Bulgákov
Editora: Presença
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra


          O mês passado falei-vos de um livro cujo tema maior era o cruzamento das vidas no meio do tumulto, das revoltas, das transformações de uma sociedade. Um dos seus cenários, o cenário final na verdade, foi o pós primeira grande guerra e aí a vida apresentava-se com o seu rosto marcado e ferido, desfeita em pedaços por dentro e rasgando a superfície dos corpos das personagens. Dos destroços sobressaiu um tipo de pessoa que, para Broch, resumia um modo de vivência que arrastaria a Europa, naquele caso específico, ao que hoje vemos. Este mês mergulhamos noutra guerra. Trata-se da primeira obra do escritor-médico ucraniano, o impressionante Bulgákov, o autor desse alucinante “Margarida e o Mestre”, a sua obra-prima.
          Já antes tinha dado a conhecer – a quem não o conhecia – outras obras deste autor, tal como “Coração de cão”, pequeno conto de ficção científica ou surrealista, numa escrita satírica que criticava o ambiente burocrático no Estalinismo. Esse tom é, talvez, o mais conhecido de Bulgákov, razão pela qual foi proibido e perseguido em vida pelo regime, a tal modo que “Margarida” só foi editado no final dos anos sessenta, mais de vinte anos depois da sua morte.
          Há autores que parecem nascer de imediato na sua maturidade estilística e surpreendem-nos bastamente com a sua voz, porém, à medida do acumular da sua obra, o nosso espanto vai esboroando-se, caem em vícios que ofuscam o prazer que outrora tivemos dos seus textos. Outros há – e parece-me ser Bulgákov um exemplo de relevo, ou Lowry – que de livro para livro parecem crescer, arriscam, depuram, surgem-nos insaciáveis na busca de uma forma sem fórmula. “A Guarda Branca” parece conter o Bulgákov de “Margarida”, encontramos já lá esse tom operático, onde as vozes se vão confundindo, misturando e, levados por essa música de palavras, toda a nossa imaginação se vê aprisionada no enredo, visualizando os cenários que se depõem; e embora não tenha a “perfeição” do livro final, o seu primeiro romance não deixa de ser belo.
          Editado entre 1924-1925, em dois números da revista “Rossia” e, mais tarde, levado à cena pelo Teatro de Moscovo com o título “Os Turbin”, o romance ocupa-se desse espaço de tempo a seguir à Primeira Guerra e à revolução de Outubro, na qual se deu o grande conflito no interior da Ucrânia, a sua guerra civil. Assim, o autor, a partir do ambiente de uma família, os Turbin (talvez a própria família do autor, sendo o mais velho, precisamente, um médico como Bulgákov), vai desenhando o retrato da violência fratricida que assolava o país, as subidas e quedas das várias facções arrasando a cidade e o campo. O país quebra-se, os laços soltam-se, as crenças, os sonhos, os desejos perdem-se, todos elas, as personagens, parecem afundar-se na neve, ou cegar-se da sua brancura fazendo com que a noite da revolta pareça não ter fundo; os dias e as noites tornam-se infindos e, no entanto, a cidade torna-se um labirinto concêntrico, fechado, claustrofóbico, por todos os ecos, os bramidos das metralhadoras, os ribombares dos canhões, os gritos, os claqueares da cavalaria no empedrado gelado.
          Acabada a leitura, eu próprio estive na guerra civil ucraniana.

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