sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Nuno Dempster - 5 poemas

ACASO

Quando, pela primeira vez, desceu
do eléctrico em Lisboa,
era tarde demais para eu saber
o que haveria nela:
que luz, além
do calor qu eendoidece
as noites de verão,
e que esperança,
salvo esse impulso de árvore.
Vivia para o sol como eu vivi,
para as noites que brilham na cidade
por entre a multidão,
onde só dois se podem encontrar.
Era tarde demais.
Foi-se o tempo em que tudo e nada dura,
e hoje penso no acaso sem remédio
de cada um de nós guardar
o passado em gavetas separadas.

*

CLARIDADE

Não sabemos de nada sobre o que
nos faltará correr, quantas vezes
os elevadores irão subir-nos
ao piso onde sonhámos a alegria.
O certo é que descemos para a rua,
trazendo o paraíso adormecido,
e entregamos o corpo ao dia, ao sol,
às árvores que habitam
um lado e outro da estrada.
E quando os ascensores nos levarem
de novo para casa,
somaremos mais árvores e luz
ao espelho das janelas,
vivendo o paraíso a termo,
no peito o respirar do tempo vago.

*

BANCOS DE JARDIM

Há retiros para onde se pode ir,
sem que as sombras expulsem o amor.
Chamava-lhes outrora paraísos.
São bancos de jardim à beira-rio
e luz por toda a parte,
lugares clandestinos
por uma só manhã que seja.

*

AS ÚLTIMAS CASTANHAS DA ÉPOCA

Fique lá fora o mundo,
seja tão-só a vista da janela:
o sol nos edifícios.
Traz as castanhas
e a jeropiga velha.
O melhor é bebermos a garrafa
e deixarmos apenas cascas.
Dezembro corre frio
e não sei se haverá
castanheiros para o ano.

*

SURPRESA

Não é que uma pessoa morra duas vezes.
Se antes estava morta,
não vai morrer de novo.
O pior é que mortos como eu
ainda se imaginam vivos.
Tão grande foi a bebedeira de ar
que morrer outra vez parece ser verdade.


in Nuno Dempster, Elegias de Cronos, Lisboa, Edições Artefacto, 2012: 9, 12, 36, 57 e 77.

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