segunda-feira, 30 de julho de 2012

Clarice Lispector



Autor: Clarice Lispector
Título: A Paixão segundo G.H.
Editora: Relógio d'Água


          Há livros cujo imenso silêncio de letras nos calam. São livros raros e preciosos, cada vez mais raros e preciosos à medida que perdemos a nossa “inocência” literária. Porém, são bem a prova de que uma coisa tão inútil quanto a literatura – seja ela de que género for – é do mais belo, pertinente, imprescindível produto criado pelo Homem. Calam o rumor do mundo, amuram essa tendência ignóbil, tão comum hoje em dia, de se ter uma opinião sobre tudo; pedem-nos somente o seu respeito, transformam a nossa percepção, obrigam-nos a pensar, isso que é do mais doloroso que existe – ter um pensamento que seja, perguntava Deleuze, o que haverá de mais violento?
          Clarice Lispector (1920-1977), escritora brasileira de origem ucraniana, faz parte desse grupo de autores cuja obra é dificílima de caracterizar (pelo menos para mim), tal é a força da sua escrita. Tendo escrito maioritariamente em prosa – romances, contos – exerceu igualmente o jornalismo, assinando sob pseudónimo crónicas de aconselhamento em revistas femininas, ou mesmo enquanto escritora fantasma de uma famosa actriz; um estúpido cigarro quase lhe leva a vida, primeiro e depois a mão, mas cede cedo, aos 56 anos, desconhecendo a causa – um cancro no útero – um dia antes do seu aniversário.
Disse uma vez um crítico brasileiro que a literatura do seu país se dividia em duas partes: a.C e d.C; ou seja, antes de Clarice e depois de Clarice. É uma afirmação que não poderei subscrever, quer por pura ignorância, quer por pessoal idiossincrasia de princípio: não ergo mitos. Todavia, cada livro seu me muda e “A paixão segundo G.H.” não foi excepção.
          A história é das mais simples que se possa conceber. A personagem, G.H., enquanto toma o pequeno-almoço, decide limpar a casa após ter despedido, no dia anterior, a sua criada, começando exactamente pelo quarto dos fundos onde essa residia. Tendo sido outrora um quarto de arrumos atulhado de objectos já sem qualquer valor, G.H. tem um primeiro confronto – uma imagem ou memória que já não corresponde à realidade – quando encontra o aposento limpo, despido como uma cela monacal, contendo somente uma cama, um roupeiro e umas malas de viagem suas postas a um canto. Na parede branca, desenhados talvez pela empregada, três silhuetas a negro: um homem, uma mulher e um cão; que a questionam pelo seu vazio fundo – segundo confronto: do que se preenche uma vida? Dirigindo-se ao roupeiro descobre uma barata e, tomada de horror pelo que seria para ela o animal mais abjecto, cai encurralando-se entre a cama e o móvel; instintivamente mata a barata fechando uma porta sobre ela e num momento de embriaguez mística, como a de um profeta no deserto, come a barata, que simboliza para G.H. a forma de vida mais antiga na Terra – terceiro e último confronto, há que despersonalizar a vida, a vida é o elemento neutro que está em todo o lado e qualquer ideia que a hierarquize, fazendo com que certas formas se sobreponham a outras (o Homem ao Animal, por exemplo), é uma corrupção.
          Agora, como tudo isto está escrito, ao jeito de monólogo interior, torna este romance um tratado filosófico-teológico sobre o vitalismo e a imanência. É tremendamente violento, ou seja, força-nos o pensamento e isso é raro e precioso. Por isso poucas pessoas o irão ler, infelizmente.

1 comentário:

je suis...noir disse...

Eu já li:)

E desta vez estamos de acordo:)