A ridícula trombeta
do Carnaval já ressoou,
desagradável, indiscreta,
e tão triste!... Já se afastou
Pierrot, exausto, sem careta.
Vai em busca de Colobina,
essa divina, essa traidora,
essa que ri quando ele chora...,
sonha a guloseima fina
de sua boca tentadora.
E na plástica poesia
de sua beleza, que exalta
um esgar de velhacaria,
com a graça de uma falta
feminil de ortografia.
E através do vago ritmo
daquele corpo tentador,
ele persegue, sonhador!,
o escuro logaritmo
impossível do amor.
Mas só o rir está a escutar
de sua amada louca e bela.
De uma risada como aquela,
ele, ao sentir-se agonizar,
ri também como riu ela.
E, o rosto de farinha,
sem sorte ele continua:
"Colombina! Colombina!"
E sua alma sobe à lua
como uma carnavalina.
*
MADRID VELHO
Apontamento
Uma praça tranquila. Sol... Mais de meio-dia.
O branco muro do convento... Uma
fachada de palácio antigo... Lerna... Osuna...
A gravidade do lugar modera a alegria
da luz. Entre as pedras erva efémera cresce.
Grades - as velhas lanças dos antepassados -
guardam balcões salientes e janelões rasgados
do casarão antigo que, plácido, envelhece.
Chegam as horas e as horas... Soa
um sino. Da porta sai uma mulher de luto.
Logo um mendigo a rua de um lado ao outro passa.
É cego. O seu cajado sobre as lajes ressoa.
Um velho de Ribera, encarquilhado, enxuto:
«Seja a paz de Deus nesta bendita casa.»
*
POLOS E CAÑAS
Vês o que estás a fazer?
Pões-me perto a tua cara,
roças em mim teu cabelo.
esta cigana danada
não sabe o que está a fazer.
Dá-me, prò meu relicário,
só um teu caracolinho.
Não te peço o teu retrato,
pois esse levo-o comigo,
em meu coração gravado.
Não há mágoa ou alegria
que fique sem seu cantar.
E por isso há mais cantares
que gotas de água no mar
e areias nos areais.
Meu coração me pediste.
Eu não to pude negar.
Já mo queres devolver.
Eu não o quero aceitar.
Que vamos fazer com ele?
*
MORRER, DORMIR...
- Filho, para descansar
é necessário dormir,
não pensar,
não sentir,
nem sonhos ter...
- Mãe, para descansar,
morrer.
in Manuel Machado, Alguns Cantares, Lisboa, Cotovia, sel.,trad. e prólogo de José Bento, 1996: 43-45, 49, 77-79 e 105.
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