quarta-feira, 13 de junho de 2012

Eduardo Guerra Carneiro - 5 poemas

No teatro mexes, entre as mesas
repovoado o palco, com as musas.
Moves cordelinhos, entretelas,
e recusas mexilhão quando
não usas, nem abusas,
da bebida. Farturas de teatro
já te dão as divas - divinas
meninas desse palco. Recusas
o drama, entre os actos
que povoam tua vida. Comovida,
a outra repovoava esses espaços
onde os álcoois fortes bem sabiam
à miséria doce que gastavas
 - medronho eras.

*

AFINAL ACABO SEMPRE POR FALAR DE TI

Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com seus passos,
afinal tão leves - a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia no regresso; assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.

*

O outro anotou, nervoso, no caderno
azul: «Voltaste!» Era bom o sabor,
o som alegre da cantiga, matinal
acorde em nocturno gesto. Nervosa era
a escrita retomada, na pressa calmosa
da mão, no suporte vulgar sobre o joelho.
A outra olhava, a perguntar: »Voltaste?»
Ele sonhava, sabendo, já negava,
nervosa pianola, que o acidente ardia.
Voltar a página, a noite, Outono descontente
em que acordava tarde. As letras acendiam-se
mais cedo quando queria. O outro voltava:
a mesa, a cama, a luz votiva. Era bom
saber-te acordada no regresso.

*

AUTO-RETRATO

Quantas horas não choras a pensar
em ti - quando ando, desando,
neste viver sem mim.
Quantos anos sem tino. De mim
este cantar desencantado - assim.
Embora os dias me afastem já de ti
procuro saber do teu espaço,
nas casas brancas onde o azul desmaia. Sinal
de outro tempo em que ainda rias,
espaço meu. Afinal alteras, aterras, ó desenterrado.
Finges, desarmas, com teu gosto azedo. Procuras,
já vives, nas verdes veredas. Mas não sabes
nem queres, do teu ao meu, essa coisa
chamada amor.

*

O CAROÇO DO REMORSO

«Ele estava cada vez mais cansado e lá fora as maçãs caíam das árvores»
Peter Handke
(em «A angústia do Guarda-Redes antes do Penalty)

Voltava-lhe outra vez aquele remorso:
a maçã de Adão não lhe cabia
na camisa. Mais do que o medo era
esse tal remorso: o ter deixado a meio
qualquer coisa que podia ter feito.
Procurava razões e nem bolsos tinha
onde as encontrar; fingia esquecer
e outra vez, anda, o remorso batia
no seu cansado peito. Não falemos
de sentidas dores, mágoas, mesmo
da sentimental lágrima: o sentido
é outro. Assim: remoía o caroço.
Mas estava cada vez mais cansado
e lá fora as maçãs caíam das árvores.


in Eduardo Guerra Carneiro, Contra a Corrente, Lisboa, &etc., 1988: 10, 29, 30, 37 e 61

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