CASAMANSA
pôr em ordem o século sobre
um tabuado que depois de tantos anos veio a servir
de pão ao bicho do poema
morde, engorda verso a verso
no rodapé da sala, na mesinha pequena de alguma cabeceira
na ombreira de um ombro antepassado
depende de onde se olha o parecer ruína
da hora do dia, da navegação da luz pelas janelas
e que, de estrofe em estrofe, pousa
sem fulgores, na poeira do sofá de napa
rasgado no braço
o poeta (este destroço que braceja) arrasta
uma cadeira de um lugar a outro, demole com a vassoura
o emprório aracnídeo sobre a porta, pretende
devolver à casa o verniz do domínio, resolver
um problema de habituação
no que foi a horta, reúne ao centro o mato
que arderá pelas chuvas, quando enfim liberarem as queimadas
usa o ancinho - na horta, no texto - com a mesma ignorância
(tanto num como no outro crescerá outra vez
e com mais força, a erva ruim)
tudo isso de manhã, em silêncio
e mudo, pela tarde, apertando desapertando parafusos
entornando lixívia nos ralos, a varrer as frestas e os cantos
a picar o reboco solto do passado
mãos desfechando uma tomada eléctrica fixa na parede
o belo efeito de um poeta electrocutado, correndo pelo corredor
a abraçar - num delírio telúrico - a laranjeira do quintal
o sangue escorre-lhe do nariz, o Verão: tudo dá
uma corzinha a esta anemia pegada
pela noite, cansado, as mãos magoadas
das tarefas, o texto nem por isso mais aviventado
a casa nem por sombras habitável, deita-se
sempre a tantos quilómetros do amor
*
A VIDA RURAL MODERNA, LIVRO PRÁTICO
ao pé do muro o silêncio não é como no poema
voa de entre as silvas e os cactos, perturbado
e em casa o ruído das alfaias do meu estudo carcome
ouvidos, coração, desde a esbaforida manhãzinha
é de sombras a preguiçosa lentidão aldeã
com que me sento ao pé do muro sob as folhas, a buscar
na silvestre província o isento vigor de um instante
tarde monossilábica, mistério protocolar da vida
de numerosas causas é o sossego ao pé do muro, germinado
de dúvidas ao poente do mundo, na canção leiloada pela ave
no perfume esmeralda e menta da ébria hortelã
arde o tabaco envolto em papel de arroz
tudo se surpreende ainda na ignição de Julho
longe a trôpega voracidade humana, menos longe
a fundeada biblioteca que medra na sala ilustrada
lareira da casa todo o ano acendida
ainda que pudesse decifrar aí o que nunca
entenderei sentado ao pé do muro, enxergando pinhos
afigurando o citro amargo de um dia engolido
no mais côncavo desenredo de uns versos
*
NEM TANTA COISA DEPENDE
preferes o canto, o lugar oculto
a folhagem, a sombra, o quarto, este
saco de trigo: ouro de um texto
sobre a velha escrivaninha do real
lá fora o clarão do arvoredo
atalhos para a tingidura da paisagem
cá dentro menos caminho, outro
panorama: a presença tão-só
desabitada de uma pessoa, mistério sem
atributo ou função
sempre a desfeita de um coração
o cultivo intensivo das figuras
e sobram tristeza e dias ao corpo que escreve
no calabouço de uma manhã muito larga
reluzente de gotas de mel
enquanto os gatos lambem o sábado
e sentado, sapo de ouro, permites-te pôr no mundo
(mas porquê) outro poema
*
DEPOIS QUE ME PARTI
ilustração chã do planeta
pouco préstimo teve este aguaceiro
reservatório de enganos
em tão opaca agra e degredo, a poesia
escuríssima nuvem no-la encobre
nula grandeza a de um texto
vai pelas gentes com uns chorados
mais leves que ao vento canas
em que trilho, com que rastro
por que abertas
mal ter vindo, mal ter ficado
*
ANTICENA
acreditei que talvez a poesia me
pudesse salvar
mas não vai acontecer: está fora
dos seus termos outra coisa que não seja
arredondar ainda mais esta
triste tristura
cunhar com luz e escuridão a grosseria
das figuras (eu, o mundo)
in Miguel-Manso, Ensinar o Caminho ao Diabo, Lisboa, ed. autor, 2012: 72, 77, 78, 88 e 93
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