terça-feira, 24 de abril de 2012

Vernon Lee


Título: Assombrações
Autor: Vernon Lee
Editora: Cavalo de Ferro
Tradução: Margarida Periquito


          A beleza deste livro encontra-se, creio, na sua cristalização. Não é daqueles que possamos afirmar, como se diz de um clássico, que atravessa, pelo tema, alguma ideia nele inscrita, ou por qualquer marca distintiva no estilo, o tempo. É um livro do século xix, escrito numa linguagem quase clássica comum a muitos autores desse século e totalmente sujeito às condições do género a que se filia. De certo modo e por isso mesmo é belo, com uma pátina que se agarra à nossa língua e a faz estalar, saltar, dobrar ao ritmo do seu tom. Admiramo-lo tal como apreciamos – se formos amantes suspensos na superfície das coisas, por assim dizer, amantes ausentados do fascínio aos mestres – um quadro de um pintor menor de uma qualquer escola; o trabalho investido, a técnica envolvida, o pedido de empatia que nos solicita, mesmo até um ou outro traço inovador mas que, infelizmente, não quebrou a filiação. Contudo, pulsa ainda, como toda a obra de arte vibra, a cada vez que nos encontramos. Mas o que fez esta obra perdurar?
          Vernon Lee (1856-1935), pseudónimo de Violet Paget, foi uma escritora britânica prolixa ao abrigo de um nome masculino. Nascida em França, viveu a maior parte da sua vida em Itália, imersa na sua imensa admiração pelo Renascimento e pela sua música do século xviii, embora tenha escrito toda a sua obra em inglês. Travou amizade com algumas das maiores personalidades britânicas do seu tempo, Bertrand Russell, Browning, Henry James; e desenvolveu uma obra que atravessa a literatura, a filosofia da arte e a estética, bem como a história e os relatos de viagem. Na literatura, maioritariamente, debruçou-se sobre o género fantástico sendo “Assombrações” um dos seus mais famosos livros. “Assombrações” reúne quatro contos do género fantástico, cada um deles discorrendo em torno de uma forma artística: a pintura, a escultura, a poesia e a música; e dos fantasmas que pairam sobre as criações. Tal como nos diz a autora, as quatro histórias “não são sobre fantasmas autênticos em sentido científico (…). Os meus fantasmas são aquilo a que vós chamais fantasmas espúrios (em minha opinião, os únicos autênticos)” (p. 14). São fantasmas reais (estiveram vivos), disso não há dúvida; ou por outras palavras, são fantasmas criados pelo desejo – fora de qualquer sentido psicanalítico – provenientes da imaginação, formas etéreas das obras de arte e que assombram – daí serem reais, criam sombra, têm uma certa materialidade – aquele que deseja, até criar a obra, ou morrer por ela, ou ainda fazer(-se) matar por ela.
          De estranhar, ou não tanto assim, a relação que se esboça entre a criação e o feminino. A mulher, no geral, joga um papel fundamental nesta obra, porém entra em choque com a posição política tomada pela autora na sua vida. Lésbica e feminista a viver num mundo de força masculina, falocêntrico, pensaríamos que nos oferecesse figuras feminis que fizessem frente a esse poder. Pelo contrário, temos personagens que em nada se diferenciam da imagem médica, etológica, psicológica oitocentista, ou mesmo anterior, da mulher: histérica, nervosa, manipuladora, diabólica, semente do pecado ou fonte do mal, aquela que desvia o homem do seu bom caminho.
          Como disse no início, um livro cristalizado no tempo e perdura, talvez, por esse enigmático paradoxo da autora.

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