o que vale a imagem se não morreres por ela
se não for palha coada pelo sémen
se não te iludires por ela até os pulmões serem vidro
e a alma o descomprometimento do grifo?
o que valeria, sem a imagem, pressentires
há tanto que és cinza?
coragem seria a do eco empatar com o vento,
matar este ventríloquo que falsei o caminho.
*
IV.
vem em fráguas a mensagem naufragar ao palato,
com se pudera a bruma petrificar na boca do fantasma.
escrevo à medida que morro e a lucidez adere
ao corpo facultativo: um abismo salva-me de ser salvo.
outonais braços.
perturba-me a existência da rosa dos ventos,
queria de novo saber como se morre sem constituir promessa.
qual o mistério necessário, como se não abdica o dragão?
os meus pés de areia: cândido um anjo, seguindo as pégadas,
quer saber de mim o contrabando das águas.
*
VIII.
ouvi cantar a ave ascética
que no ninho esqueceu
as asas. de outra vez vi
um filme em que o palhaço
era assassino por engano
e o circo toda a dimensão
do verosímil. ofereceste-me
um morango e enquanto
o trincava informaste-me
que o amor acabara.
aprenderei esperanto
*
VI.
não pactuar com o orgulho duma razão vital,
sempre fui céptico como o pólen prolifera no solo ácido
da geada. assim o ciúme da tua morte
por este temperamento tão próximo da ficção
- não mais que um trevo de saliva nos lábios ensonados
e o deixar-te o corpo e a idêntica mágoa vazios pela manhã,
como se deus tombasse no poço indecifrável do sonho
e nós aproveitássemos para despertar.
se não foras apenas a imagem da minha sedução, o preço
duma conquista nunca feita, seria por alguma vez imprevisível,
mas muitos lugares vigiam um nome
e estou tão cansado de me apoderar.
hoje mesmo deitei o teu retrato ao rio e a saudade
levou-o para o fundo;
talvez sofras da sorte dos afogados no solipsismo dos corais.
sabes: de manhã no metro, quando regressava, um anjo louro
sorriu mas não me correspondeu. ficou desiludido
de ter sido como me ensinaste: fêmea.
insinuante, aprenderei de novo, só, como de falhar a sedução
nos seduz o amor...
*
X.
a dispersão entretém: apaixonado, mansamente inquieto,
traçar na areia alguns circulos
até não distinguir do mapa as mãoes que o desdobram.
as unhas, os dentes, fazem de âncora.
desta sombra ser sujeito o eco no meu peito queima.
in António Cabrita, O Milagre das Tribos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/ Plural, col. gota de água, 1982: 17, 25, 27, 50 e 53.
2 comentários:
tinha-me esquecido completamente disto. obrigado pela lembrança
não há que agradecer; os leitores também existem para lembrar os autores do que escrevem. um abraço.
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