sábado, 31 de março de 2012

Tiago Patrício - 5 poemas

O gato e a casa


Nas casas onde morou gente
há sempre um gato abandonado
de cabeça forte e um corpo lento
espalhado pela desolação do lugar

Mantém a temperatura na cozinha
arranha as paredes e os seus pensamentos
são habitantes subalternos dos quartos
e das horas de sol à volta do jardim

Mas as casas debaixo das árvores
anseiam por outros homens
nos joelhos feridos e nos quartos interiores
homens que as ocupem e lhes levantem a mão
como garfos cheios de uma fome terrível

E que depois perguntem onde estender os braços
até o espaço ganhar a forma de uma família
de uma redoma confusa, com um crucifixo
e uma finalidade latente de procriação

E os gatos assustam-se com as casas transtornadas
e bufam até que chegam os primeiros carros
que ocupam todos os lugares marcados
e fica apenas o espaço fulminante da culpa

Depois morrem longe dessas casas
e das inquietações, de garras recolhidas
Mas quando nascem outra vez
são belos como relâmpagos
e demoram dias a afagar uma ideia

Abrem os olhos sobre crianças
e homens dóceis como alimento
e aparecem quando querem
em muitos lugares ao mesmo tempo

São como revelações
são textos prometidos
com a marca da renovação
e nos olhos a serpente que embala
o corpo do arrependido
e depois dormem
como se fossem criados
numa casa enroscada ao Inverno

*

Há noites que são estradas cortadas pela cabeça


Com janelas de árvores à espreita numa floresta inteira
e ao centro as pedras que furam as orelhas
com um medo branco carregado de cordas e navios afundados

Uma perna estende a imobilidade para dentro
e uma torre submersa rodeada de olhos
fixa no ar a mesma longitude
e ordena a remoção da perna perdida do homem

Então constroem-se novos países
colonizam-se o mar por baixo e cada bandeira
tem doze moinhos ao vento
e uma espinha dorsal por quebrar

Num vespeiro produz-se um medo espesso
dissimulado de cemitérios e territórios ocupados
repletos de jardineiros a recortar a história
e os ouvidos ocupados na crepitação da carne

Erguem-se portões carregados de cedros
e pedras que nunca dão pea falta das flores na terra
até ao dia em que a fronteira cede e o país é outra vez
uma estrada de passagem um dia mais curto
ou uma hora mais tarde

E as fábricas suspiram nas vedações
com os operários de luz ao alto da cabeça
a demonstrar e a reproduzir uma harmonia
um sacramento de sentinelas subterrâneas
e a perpetuar o mistério sobre a terra

*

Rio Moravé


Depois da montanha o rio desce das turbinas
começa a entender o ar que respira
e a fugir do sufoco, a libertar um vapor
e a transformar-se na paisagem escura

O rio moribundo cede à inclinação
de vários anos ao relento
reclama árvores nas margens
e fósseis de peixes oxigenados

Os pássaros nos ramos mais afastados
imitam canções de outros pássaros
sobre rios e mensagens esplêndidas
a desaguar numa melopeia occipital

E o rio estropiado de profundidade obscura
deitado no esquife ainda a tentar escorrer
a fingir uma pulsação quando assalta o açude
e a fazer uma espuma azul na rebentação

A destilação do rio é um vapor cáustico
que reaparece como um cadáver espesso de três dias
e imita uma descida como se estivesse nos planos a juventude
de refazer-se nas nuvens e regressar às montanhas

*

O fim do Outono em Dolni Pocernice, Praga 9


A neblina controla as árvores e a terra musculada por
comboios soberbos que se avistam entre as árvores
derrubadas. A grande floresta é um parque rarefeito, com
jardineiros que relembram a terra e crianças com os pais
pela mão e depois para trás pelo mesmo caminho.
Tantos anos e o frio nas orelhas e nos dedos até subir ao
nariz já é outro, são outras as casas, os carros e só os
Velhos têm a marca gravada, na língua, nos olhos e nas
mãos gastas de uma fraternidade enrugada, habituadas
à delação e aos dias contados debaixo de uma projecção
infinita.
Ao fundo do Outono uma chaminé encobre o sol oblíquo
das três da tarde, lança nuvens brancas e vidradas, que
encadeiam a luz baça, com um odor corrompido.
Dentro da floresta uma árvore, vive a sua segunda vida
ecuménica, trabalhada por um homem horizontal de duas
cabeças, que gravou um pássaro exótico de corpo
distendido até aos 7 metros, onde acabam as raízes no ar
do antigo corpo de árvore ligado à terra. O bosque abaixo
do nível de uma azenha, instalado por descuido, cresce de
noite como os cabelos de um cadáver.
À minha frente o indício de um Inverno Soviético ataca-me
certas fibras nervosas, de um fascínio tenebroso na queda
das estrelas. São árvores despidas que enunciam uma
marcha contra o vento, um coro totalitário, frio, cruel, de
uma solidão cheia de arquipélagos escavados na terra.
Uma impotência de cidade fechada, de casas vigiadas,
de um país inteiro congelado, mulheres de uma magreza
extraordinária, de rosto polido e uma limpidez mínima
nos gestos. Depois o nevoeiro cresce nos campos e nos
lagos e avança pelas aldeias da montanha e desce à cidade,
onde concentra esse gelo fraterno que medeia o centro e
as fronteiras. Nas ruas, os carros rodeados dessa lentidão,
vazios, monótonos, são uma continuação do nevoeiro, são
peças do mesmo edifício de alta densidade, programado e
definido até ao fim do Outono da humanidade.

*

A abolição das fronteiras


As fronteiras eram belas
cheias de mulheres fardadas
de cores fortes e madeixas imperativas
que ansiavam por ser atravessadas
Fronteiras solenes quando cobertas de frio
no aperto da multidão
como trincheiras forradas a papel em triplicado
e semeadas de vida em trânsito

Eram fábricas de nacionalidades
com carimbos espalhados pela periferia
em linhas acidentais entre as montanhas
Eram a máxima descentralização de um estado
a exterioridade até às costuras
para conter a implosão do território
Essas mulheres a desfiar um sorriso de vidro
e a ordenar um amor impuro aos expatriados


in Tiago Patrício, Cartas de Praga, (ed. bilingue), Lisboa, Clube Português de Artes e Ideias, 2010: 9-11, 17-19, 57, 59-61 e 63.

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