quinta-feira, 29 de março de 2012

Horace Walpole




Título - Contos hieroglíficos
Autor - Horace Walpole
Editora - Cavalo de Ferro
Tradução - Nuno Batalha


          Esqueçamos, por momentos, algumas das teses associadas ao surrealismo, nomeadamente essas enraizadas, ou tão fortemente aderidas ao psicologismo, à psicanálise, ao trabalho do sonho. Ponhamo-las de lado, pouco ou nada têm a haver com o que nos traz hoje à escrita; contudo, uma vez que não temos qualquer poder de proibição, ou autoridade na matéria, concedamos todo o direito a uma análise interpretativa, fundada na psicologia, a quem quiser mergulhar neste volume de contos. Interessa-nos antes um argumento de Breton, o qual afirma existir uma intemporalidade inerente ao surrealismo na relação que estabelece entre a escrita e a imaginação – e esta enquanto fundo produtor de imagens, superfície de inscrição do mundo, de partes, elementos, segmentos, movida por uma força de livre associação desses mesmos restos de mundo. O surrealismo nasceu com o homem; talvez até haja um surrealismo na e da natureza, havendo tantos estranhos encontros de corpos. Direi mesmo que o surrealismo está, o mais presente e vivo, na pele de um choco ou de um polvo, em todas as relações simbióticas da flora e da fauna. Mas isso, dir-me-ão, é uma patetice, uma divagação para atrasar a escrita. Bem, venha a apresentação.
          Em 1785, Horace Walpole (1717-1797), um político inglês filho de um antigo primeiro-ministro, Robert Walpole, faz publicar um pequeno volume de seis contos, os “Contos Hieroglíficos”. Já uns anos antes tinha dado à estampa um absurdo romance, “O castelo de Otranto”, que, dizem-nos os editores dos “Contos”, “marcou o início traçou os contornos de todo o movimento gótico europeu”. Ora, o livro que apresentamos irmana-se, antes, nessa feérica linhagem com Rabelais, Swift, Carrol, Gógol, Bulgákov, do livre mundo da imaginação, da sátira, da ironia e da crítica à pouca realidade do Homem. Tanto assim é que Walpole assina um mínimo e mordaz posfácio asseverando existir “infinitamente mais imaginação na História, que não tem qualquer mérito se não for verdadeira, do que nos romances e novelas, que não pretendem conter verdade alguma” (p. 53). estes contos nascem, portanto, de um atroz desgosto face à arte literária do seu país e do seu tempo – não sabemos a sua opinião quanto a Swift, seu contemporâneo (tinha Walpole 28 anos quando o irlandês morreu). Antes mesmo de chegarmos à declarada crítica do posfácio percebemos, de imediato, que o autor deseja definir as fronteiras entre arte e ciência ou conhecimento, separar os domínios da ficção e da verdade, instaurar um novo reino para a literatura.
          O seu autor anula-se, ou ausenta-se de sua autoridade, relegando-se a mero tradutor, compilador e editor de uns textos cujo «verdadeiro» autor é difícil de determinar, uma vez que o contos “foram sem dúvida escritos um pouco antes da criação do mundo” (p. 13); e de um livro imenso oferece somente seis contos: uma noite a mais que destrói as mil e uma noites; a teimosia de um monarca em casar a sua primeira filha que nunca chegou a nascer; a história de uma filha de um mercador, verdadeira causa do Cântico dos cânticos de Salomão; o conto de uma rainha-menina; a viagem de um príncipe chinês em busca do seu amor e conduzido por um oráculo absolutamente improvável; e uma quase reinvenção de “Romeu e Julieta”. Não nos deixou mais que esta louca meia-dúzia de contos, que nos dão um prazer enorme de leitura; porém, a previsão que aponta no prefácio sobre o que motivou a apressada publicação, ou seja, a de que “a arte da imprensa não tardará a cair no esquecimento” (p. 11), infelizmente parece demasiado próxima, quase quase à porta.

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