quarta-feira, 7 de março de 2012

Eduardo Guerra Carneiro - 5 poemas

A Barba

A barba é o meu gato. Afago-a
nesse jeito de quem passa os dedos
pelo dorso de um bichano. Eu sei
que estou a tocar num tigre: a barba
encrespa-se, revove-se mesmo.
Ondas, campos de milho, searas,
também conhecem afago igual.
Mas este gato rebelde, a minha barba
apenas, é agora tudo a que me prendo.
Mestres já me dizem do excesso
de assim me virar para dentro.
Não! É para fora! Mora a barba
noutras eras, noutro espaço. É ela
que me afaga a mim: a última ternura.

*

III

Voltar a alinhar palavras e sentir
uma sensação de já visto. Filme
que se passa ao contrário. Cenas
de praça junto ao rio; canais
iluminados; um barco ao longe.
Voltar então ao princípio: o fim.

Mas fazer disso mesmo profissão
de fé, Sem remorso. Agitar
o contorno das cidades, alterar
ruas, trocar avenidas, deixar
que o acaso decida o rumo
do caminho a percorrer.

Assim poderás, então, entrar
na tua cidade: nascer de novo.

*

(3)

Guardo um desenho: o Sol
já desmaiado, a pequena casa,
pessoas à janela, a minúscula
árvore, até um pássaro.
As cores, a lápis retocadas,
o tempo as levou. Mas ficaram
os traços, no papel vincados.
São coisas assim que marcam
o regresso. Sei que aí estás
a ver outros traços, para ti
escritos. Conforta-me a memória
de um sorriso e sinto nas asas
dos pássaros o voar dos anjos.
Guarda-me do abismo!

*

(4)

Disseste um dia: «Tive um sonho
em que sofrias muito
e eu não sabia o que fazer por ti.»
Por ti nada posso fazer agora.
A não ser esperar encontrar-te
noutra galáxia de puras
borboletas de luz. Magoa-me
sentir que tanto havia ainda
para dizer e fazer! Olha:
visitas-me nessa transparência
infantil, feita de pequenos nadas
que são tudo - consolo
de um solitário coração
que já nem sequer é caçador.

*

(6)

Sei que me ouves na tempestade
e nas gotas que ficam nas folhas,
a brilhar. Sei nas ondas ouvir
teus mergulhos de sereia
e nos gritos dos golfinhos
entender teus recados. Percebo
no trinar dos pássaros outro
som - a tua voz. Assim, quando
em tempo de solidão e desamor,
mergulhos em trevas de terror,
quase me apetece desistir, como tu
desististe. Mas procuro-te na vida
e na vida luto contra a morte.


in Eduardo Guerra Carneiro, Profissão de Fé, Lisboa, Quetzal editores, col. graffiti, 1990: 28, 49, 61, 62, 64.

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