quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Marcel Schwob



Título: Coração duplo
Editora: Cavalo de Ferro
Tradução: Raúl Henriques


          Quando penso na Paris do final do século XIX – é a imaginação a trabalhar pelo fascínio – as suas noites varam os meus olhos com farândolas, girândolas, estrelas verdes de absinto, salas de ópio, chapéus-candelabros, uma máquina de costura irmanada a um guarda-chuva numa mesa de operação, fantoches, moinhos de música e algaraviada; aqui e ali, pelos bairros, nas pontes, nas sombrias ruas junto ao Sena, passam cometas em forma de homens e mulheres. As suas manhãs são de névoa e lixo, um repugnante odor invade as narinas de águas polutas, lamacentas – um pouco à semelhança do que se levanta do Arade em maré baixa – cascos metalizados batendo em pedra e os corpos de trabalho, tão novos e simultaneamente idosos, encarquilhados, reformados, procuram esquecer o pouco de vida que lhes resta. Quando penso na Paris do final de século... para falar verdade... só me vêm nomes à cabeça, esses cometas atrás, vidas breves, intensas, fulgurantes: Lautréamont, Rimbaud, Jarry, Lautrec, Van Gogh, Satie. E agora este, Marcel Schwob.
          Nascido a 1867, numa família de letras, cedo se mostrou brilhante na sua e noutras línguas, seguindo a linha de sangue. Escreveu para jornais, traduziu Shakespeare, Defoe, Stevenson – com quem se fascinou, trocando correspondência e visitando a ilha de Samoa após a morte do romancista escocês – ensaiou pensamentos em torno da calão – o argot – e deixou larga obra em poesia e prosa. De sua mão saiu uma renovação do conto fantástico – curtos, breves, mergulhando-nos, logo nas primeiras palavras, na aridez do medo – e próprios processos narrativos que influenciaram autores tão diferentes como Gide, Faulkner e Borges. Um cometa desaparecido aos 37 anos, em 1905, quedando-se no Monte Parnasso.
          “Coração duplo” é um excelente exemplo da inovação do conto de terror. Mas em que sentido? Ora, para quem gosta de saltar prefácios e ir direito ao assunto, este não pode ser, de todo, descartado. Nele encontramos as linhas de força do projecto de Schwob. A sua intenção é repensar as duas componentes da tragédia, apontadas por Aristóteles, o terror e a piedade; e, um pouco à semelhança dos clássicos tragediógrafos, o seu assunto versará as acções dos homens – sublinhe-se bem à semelhança, pois as personagens, aqui, são muito diferentes das gregas. Poder-se-iam mesmo, talvez, ler estes dois volumes de contos como um ensaio ficcional do caminho que vai do terror à piedade.
          Antes de mais, o reconhecimento do que se guarda no coração do homem, sentimentos, disposições; questionar a sua relação com o exterior e, paulatinamente, conduzir o questionamento cada vez mais para o seu interior para de novo lançá-lo ao mundo; e tudo isso requer tempo, “a marcha da alma, para ir do terror à piedade, é lenta e difícil” (p. 12). Reconhecer, igualmente, o que forma o terror – superstições, mitos, crenças, exteriores ao Homem – e o que dele faz morada, desta feita no seu interior. Tudo isso perfaz o primeiro volume, misturando tempos históricos, por vezes temos até a impressão de que personagens se mascaram noutras e passam ao conto seguinte. Já o segundo volume é tecido diferentemente – pela piedade, portanto –, começando na pré-história, passando por Roma, as ocupações e migrações de povos, a Revolução Francesa, as guerras franco-prussianas, até um tempo imaginário – tão soberbamente parecido com o nosso – no conto intitulado “O Terror Futuro” – talvez Schwob previsse a 1ª ou a 2ª grande guerra.
          Mas uma pergunta ficou a ecoar em mim. Se, como diz o autor, “o homem torna-se piedoso, depois de ter sentido todos os terrores, depois de os ter tornado concretos ao encarná-los nos pobres seres que deles sofrem” (p. 13), quem é o piedoso ou de quem se terá pena? O leitor das personagens ou as próprias personagens deste leitor, que tanto prazer retirou dos seus terrores e infortúnios?

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