quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Joëlle Ghazarian





Título: Cântico do Crime
Editor: Edições Quasi
colecção: biblioteca metamorfose
tradução: Júlio Henriques


          Das obras nascem obras, este é bem o mote deste fantástico livro da franco-arménia Joëlle Ghazarian. “Romance” inspirado na poesia de um dos poetas maiores de língua portuguesa, Herberto Helder, seria errado pensar que se trata de uma espécie de tradução da lírica de Helder numa prosa mágica da autora. Esta obra é completamente outra coisa, uma outra obra, uma criação singular na literatura portuguesa. Da literatura portuguesa? Claro que sim. 
          A autora, de origem magrebina, reside em Portugal desde 1985, tendo vagabundeado por todo o lado, inclusivamente aqui, antes da “revolução dos cravos”, fixando-se, desde então, no interior alentejano – Portalegre, mais precisamente – onde lecciona francês no Instituto Politécnico dessa cidade. Apaixonou-se por Portugal e nele já editou três livros – dois pela editora Fenda, “Sakarina” (1986) e “Ó de Amoque” (1995) – bem como tem participado no domínio das revistas literárias com ensaios sobre a poesia contemporânea portuguesa. Embora não escrevendo directamente em português, socorrendo-se das excelentes traduções de Júlio Henriques, os seus escritos não têm nacionalidade ou fronteira; porém, encontram a sua morada, mais do que em qualquer outro lugar, na nossa língua, por esse próprio desejo da autora de aqui permanecer e nos oferecer textos ímpares no panorama nacional. O seu impacto é na nossa cultura, no nosso imaginário, nos seus leitores e, há que dizer com muita sinceridade, não temos nada a perder. 
          Podemos ler numa das páginas preambulares: “em uníssono com Herberto Helder”; e o que isso quererá dizer? Joëlle Ghazarian serve-se da poesia, de imagens, versos do poeta que, para quem conhece a sua obra, são bem reconhecíveis, podendo alguém pensar que pouco há de original. Nada de mais errado, qualquer traço que possivelmente ecoasse a arte poética de Helder é afastado no prosseguimento da leitura, facto apontado mesmo pelo poeta numa carta dirigida à autora (apresentam-se nas páginas 11 e 13 o fac-símile, pela mão de Herberto Helder, e a cópia) onde se lê: “Se é verdade que você utiliza material meu, em bruto, cristaliza-o depois num sistema peremptoriamente seu. Le son et le sens, isto é: forma e demonstração de entendimento do mundo – nada têm a ver comigo”. Nada mais verdadeiro. Qualquer impressão rapidamente se desvanece e a voz do poeta nada mais é, aí, que um rumor de fundo, como qualquer outro no momento em que lemos “Cântico do crime”. 
          Não é uma história fácil, violenta, escatológica, mágica, muito pouco realista. A linguagem é intensamente densa e na escrita persiste uma tensão poética que nos conduz vertiginosamente como numa sinfonia, na qual o corpo se vê como instrumento de inquirições, de descobertas, de criação. Um autêntico labirinto que narra o encontro e a construção de uma estranha comunidade, reunindo duas crianças (Inês e Rafi), duas mulheres (Macha e Oliana) e um homem, o escultor. Comunidade estrelar, de cinco pontas, cada uma delas procurando a sua forma de vida exemplar, o seu lugar desligado dos laços familiares, civis, sociais, erigindo a partir do conhecimento do corpo, mais do que de juízos morais, condutas de essências, prerrogativas transcendentes, uma nova ética de existência associada à festa, à amizade, ao profundo ritmo interior da vida. 
          O crime, creio, de que o título aponta, não será outro que esse. O crime de uma vida em comum, despegada mas unida por laços outros que os de sangue e da mundanidade da sociedade, esse féretro reprimidor; contudo, o laço não se ata pela espiritualidade de uma transcendência, mas bem pela comunidade imanente dos corpos, esse sinónimo de vida, conduzidos à sua potência extraordinária, à excelência de um modo de existência responsável, de vidas que respondem a vidas, a cegueira do amor sem idade e sexo. O crime de se viver livremente com respeito. Este cântico do crime é uma canção à liberdade e ao “Corpoema” (p. 29)

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