quinta-feira, 9 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (iv)

Podíamos avançar. Cancela levantada. Estacionar ali ao fundo. Divisão de carros. Grandes para aqui, os outros para ali. Tudo muito ordeiro, tudo muito certo. O barco cada vez mais próximo. Avançávamos às mijinhas, em partes. A baleia abriu a sua grande boca metálica, podíamos ver-lhe as mandíbulas. Com o passar do tempo, com a hora de partida já em vista, o caos foi solto no porto de Algeciras. Aquele rio de carros que fluía docemente até à boca da baleia, cada viatura encontrando o seu lugar no enorme estômago, começou a correr demasiado lentamente para o gosto marroquino e, como um leito de água que encontra um obstáculo e se vai acumulando e acumulando até começar a transbordar para os lados fazendo um extenso lago antes de derrubar o que lhe impede o seu livre correr, o atropelo, o salve-se quem puder sem razão aparente, porque ninguém ficaria de fora do leviatã, deu início. Os guardas que indicavam os lugares, que ordenavam o desenrolar da entrada no barco, perderam-se no meio de tantos carros, já não tinham mãos a medir. Ultrapassava-se por todo o lado. Os mais pequenos primeiro e os maiores depois qual quê, aquilo era cada um por si. Onde havia um espaço, uma brecha e lá vinha um meter-se, para ficar mais próximo de casa. Claro que não ficámos a ver sem fazer nada, não. Avançávamos, pois, não iríamos ficar para trás. Mas não é que, quando íamos avançar, numa dada altura há um sacana numa carrinha familiar que se tenta meter à descarada. Foi o fim da picada. O T. salta do jipe e, bem ao jeito do Porto, vai lá pedir contas. Bom, é preciso dizer que o T. é um tipo alto e forte, mete algum respeito, assim com um físico de jogador de rugby, e o tipo da carrinha era um franzino de óculitos enfezadito. O marroquino lá espingardou em espanhol e o T. em português e a S. a dizer deixa lá isso, não vale a pena T., entra para o jipe e eu, um olho aberto outro fechado, entre o dormir e o acordado, ria-me por dentro.
Bom, lá entrámos. Estacionámos, tirámos as nossas mochilas, onde guardávamos as coisas essenciais, como o passaporte, a carteira, etc., e dirigimo-nos para cima à procura de cadeiras para nos sentarmos. Claro que já estava quase tudo cheio, tudo a falar alto, tudo alegre e vivo, sabendo que a qualquer momento deixaríamos a Europa e encontraríamos África, mas lá nos encadeirámos. O T. ao pé de uma janela, separado de nós e eu e a S. mais ou menos ao meio, juntos, mesmo em frente da porta que dava para a primeira classe guardada por três camareiras, uma mulata de rastas e bem engraçada (a S. disse-me o mesmo à vinda) e as outras um pouco a dar para as bruxas. Nas televisões começava a dar um episódio de uma série que também era transmitida em Portugal, Los Serranos. Com alguma dificuldade, depois de ouvir o aviso em espanhol sob o peso gigantesco do sono por todo o corpo: a vossa atenção por favor, muoc muoc muoc, este barco é para não fumadores, iremos avançar a não sei quantos nós, muoc muoc muoc, a temperatura é de muoc muoc muoc, o capitão deseja-lhes uma boa viagem; e de seguida no risível espanglês que, se pensamos que não percebemos o aviso em espanhol porque foi dito com muita rapidez e ainda bem que a seguir é em inglês, é o mesmo que nada, é pior ainda porque nos estamos a rir com os abeque beque beque que ninguém percebe mesmo. Como dizia, com alguma dificuldade, adormecemos, cada um por si e apenas despertámos quando atracámos na Ceuta espanhola. Mediterrâneo ― que eu pensava dar uma olhadela, como faço quando atravesso o Tejo, porque a viagem dura o mesmo que para o Barreiro, exactamente meia hora, o que para mim demorou pouquíssimos segundos ― nem vê-lo. Mas também, sem luzes e escuro como breu, pouco dava para entender como era o Mediterrâneo. Lá nos levantámos, descemos para o estômago, esperámos que uns quantos carros saíssem para podermos entrar e saímos da máquina marítima. Noite ainda, nem nevoeiro nem Sebastião, apenas uma estátua do Infante Dom Henrique apontando para trás, para a Europa, mas essa iria ter de esperar o nosso retorno. Agora só nos faltava encontrar um mapa de Marrocos, para saber que estradas teríamos de apanhar para ir até Fès passando por Chefchaouen. Só que mapa nem vê-lo, como o Mediterrâneo. Tudo fechado. As papelarias abriam apenas às dez horas da manhã, mas até percebermos isso andámos de um lado e para outro em Ceuta por bombas de gasolina, porque se em Portugal encontramos mapas nas bombas de gasolina de certeza que em Espanha também. Entendemos que o melhor era encontrar um café aberto para comermos qualquer coisa e esperar a abertura das papelarias.

(cont.)

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