quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - monólogo

5.

Tu eras tudo o que eu tinha
de seguro, um chão por onde caminhar.
O teu colo tinha a paz de um degrau
de uma igreja onde se pudésse sentar
ao fim da tarde vendo o vento
arrastando as folhas pelo chão.
O teu encosto era quente e macio,
um verão das minhas noites frias. E a tua voz
era o meu sono tranquilo quando lias
para mim. Eras uma cadeira e uma botija
de água quente. Nunca percebi
se me amavas ou não, o que eu era
realmente para ti, porque nunca te abrias,
quero dizer, eras sempre tão calado,
sempre tão preso ao teu mundo
silencioso de palavras que escrevias,
às tuas manias de perseguição, à leitura
de sinais que apenas tu interpretavas
segundo a tua conspiração do momento.
Tentavas impingir-me a ideia
de que tudo estava ligado,
de alguma maneira, por fios
invisíveis, que as pessoas construiam
o que viam e sentiam por desejos
que se uniam sem a noção dessa reunião
de vontades, mesmo pessoas
que não se conheciam, nem se cruzassem,
nem se vissem, mortas,
vivas, por morrer, por nascer,
as que gostávamos, as que detestávamos,
as ditas boas e as más, todos e todas
se queriam umas às outras. Se eu
estava ali à tua frente
era porque ambos queriamos
que assim fosse, que todos e todas
assim queriam e, talvez, por essa razão
ninguém é realmente livre,
quer da bondade, quer da maldade do mundo,
todos somos culpados pelos erros, crimes, todas
as coisas más, mas também das boas.
Quando alguma coisa humana acontece,
todos queremos e não queremos ao mesmo tempo.
Mas eu não acredito nisso, desculpa,
agora não posso, não desejo, não quero,
nem tenho vontade de acreditar nisso,
porque te quero, quero-te aqui, tu
e não o mundo, porque o mundo não me serve
se aqui não estiveres, mesmo escrevendo
em silêncio quando te queria na cama
ao meu lado a dormir comigo
ou a ler para mim, nem posso acreditar
que o mundo, as pessoas não te queriam
aqui comigo, agora, aqui do meu lado.
O mundo todo não me cabe
no coração, não me enche
esta casa vazia de ti e o que aqui está comigo
é uma parte tão pequena de ti
que já nem te vejo, já quase não te sinto,
já quase nem estou no mundo.
E agora?

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