quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

XI

Fui tentando levar a vida que tinha antes de o conhecer. Foram muito difíceis os primeiros meses. Acordava enjoada, vomitava, adormecia por tudo e por nada. Também enojada por aquilo que ele me fez e eu lhe dei de coração aberto. Deixei de sangrar de um momento para o outro. Tinha uma fome de loba. A cerejeira voltou a ter rebentos e foi só nessa altura que percebi que te trazia.
Setembro estava a começar. Nem sabes o desgosto que tive quando te vi nascer. As dores não foram muitas, não comparadas com as que já passei com ossos e coração partidos. Não sei de onde vieste, sabes. É que ele me tinha estragado o sexo com um espeto em brasa, como já te disse. Por isso pergunto-me, de onde é que tu vieste? E aquela outra pequena cerejeira ali fora em frente da outra, de onde é que ela veio? Nasceste de um sexo mutilado, sabes. E queres saber outra coisa? Queres? Eu não te quis. Ias ser podre como o teu pai. Mau como ele. Pior ainda, talvez.
Mas saíste, depois de ter cortado o cordão que nos ligava com os dentes, peguei-te e levei-te lá para fora. Mergulhei-te na tina. Não aguentei os teus gritos. Quase que me furavam o meu único bom ouvido, o que me resta. Nem tinhas aberto os olhos e de novo te entrava água pelos pulmões. Só que de repente ri-me pela segunda vez desde aquele dia, ou desde que me lembro depois da morte do meu pai e mais tarde da minha mãe nunca mais me tinha rido até àquele dia. E veio-me à cabeça outra vez aquela frase, um afogado afogar-me. Arrependi-me no mesmo instante em que abriste os teus olhos. Olhos tão doces não poderiam esconder a maledicência de um monstro como o teu pai. Não traziam as sombras daqueles olhos que foram azuis. E soube naquele momento que o teu coração não era de trevas. Não era, não poderia ser se trazias o meu sangue. Nem deveria ser, jurei-o pela cerejeira de minha mãe e a contragosto da cerejeira tua irmã.
Retirei-te da tina. Tirei a minha camisa e envolvi-te. Perdoa-me, perdoa-me, perdoa-me, mas acho que me compreendes se te escondi esta história até hoje. Conto-ta agora porque vi hoje na cidade uma notícia desconcertante, enquanto passávamos pelo beco onde o livreiro tem a sua loja. Na parede estava colado o jornal com uma notícia vinda lá de Inglaterra. Falavam de uns crimes horrorosos cometidos sobre umas pobres mulheres, que tinham sido estropiadas, esventradas, cortadas, desorganizadas, quero dizer, tirados os órgãos. A polícia não tem qualquer conhecimento sobre quem empreendeu esses crimes, esses actos horrendos. Mas eu sei quem foi. Não tenho quaisquer dúvidas. Começou comigo.

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