sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

II

Disseram-me um dia Rita põe-te em guarda…
Não, desculpem, estava a brincar.
Agora a sério.
Disseram-me um dia que o que havia de mais belo na noite era o inesperado, o encontro entre estranhos. Vaguear sem saber bem para onde, entrar em ruelas e travessas desconhecidas, ou atravessar as que conhecemos sobre a nova luz da noite, onde os candeeiros, acesos, apagados ou intermitentes, transformam as casas, as caras de amigos, fazem surgir sombras imprevistas. Quantos amores e desamores se fizeram na noite? Quantas viagens magníficas não se iniciaram num momento súbito, e por uma ideia quase idiota, quando a Lua vai lá no alto cobrindo-se e descobrindo-se com as nuvens?
Benjamim não esteve com meias medidas. Quando se deu conta do breu que o envolvia, do frio que a sua fina roupa deixava entrar, levantou-se de imediato mandando aquele torpor do dia para os diabos. “Se não vivi no papel, que viva este meu verdadeiro papel. Tenho que cair em mim e assumir que não sou mais do que um anónimo entre anónimos” pensou, “vou sair, comer fora, beber, falar com os meus pares e para o diabo a poesia e a literatura”. E assim fez. Entrou em casa, vestiu uma roupa mais adequada para o frio, colocou o seu chapéu de pele de coelho preto, certificou-se se tinha dinheiro na sua carteira, pegou na sua bicicleta e pedalou para a cidade.
Parecia outra pessoa, um novo homem, cheio de esperança e alegria nos seus olhos e rosto. Sorria quando a brisa lhe raspava na cara. Por quem passasse cumprimentava com brio, aos idosos tirava-lhes o chapéu, aos adultos baixava a cabeça com reverência, aos mais jovens e aos da sua idade acenava sem qualquer contensão. E os cumprimentados respondiam como se fosse comum, como se Benjamim fosse um amigo e companheiro de longa data que já não viam há muito tempo. Era aquilo que precisava, não uma frase a seguir a outra, não. Precisava daquele calor humano, daquele entendimento sem pedir nada em troca que, tirando raras excepções, apenas entre verdadeiros amigos sucedia. Toma, leva, dou-te, porque sim e eu estou bem assim.
Em poucos minutos assomou a uma das portas daquela cidade velha. De fora era uma imagem estonteante. Pesada e amuralhada cidade de casas brancas que se elevava num mínimo monte imperceptível. Do frio nem vê-lo, com tanta pedalada lá dos arrabaldes para aquilo que se poderia chamar um centro. Toda de granito cinzento-escuro, a cidade iluminava-se com velhos candeeiros amarelos e janelas que deixavam atravessar as luzes dos interiores das casas. Benjamim acelerou o movimento das suas pernas e meteu-se por entre um parque de estacionamento exterior apinhado de carros, rolotes de hambúrgueres e cachorros, cães vadios à procura de restos e limoeiros repletos de frutos cheios e amarelos. Circulou um pouco por entre as viaturas estacionadas e, passando rente às habitações coladas às muralhas, entrou então pela porta que o levaria ao coração da cidade. Àquela hora da noite, dez horas, não havia muito trânsito, por isso pôde abrandar a sua velocidade e lentamente dirigir-se pela Rua das Águas Paradas que cortava, mais ou menos a meio do curso, o largo Jaquim Tonto a guiar onde se encontrava o teatro municipal, com o nome desse renascentista do cancioneiro geral, Garça de Esposende. Nessa praça, que agora é um jardim, não havia vivalma, por isso decidiu não parar aí e seguir caminho. Sentia já um calor por todo o seu corpo e a sua cabeça, debaixo do chapéu, começava a transpirar.
Quando chegou finalmente ao centro da cidade, deixou-se deslizar enquanto procurava o sítio ideal para estacionar a sua adorada bicicleta. Como a praça, o coração daquela cidade, se encontrava repleta de gente, pensou que o melhor seria atrelar a sua querida e adorada bicicleta num gradeamento junto a um Banco, onde os polícias costumavam fazer a sua ronda, isto é, com os seus pés bem fixos aos paralelepípedos cheios de cagadelas de pombo e mirar à volta a paz do dia-a-dia. “Aqui de certeza que não ma roubam, espero eu, embora uma vez já a tenha estacionado nas redes à volta das piscinas públicas, onde há sempre gente, e me tenham roubado o selim, o que foi um bocado chato para dizer a verdade”.
Depois de ter posto a corrente e o cadeado na roda e à volta de um pilar, dirigiu-se em passos lentos ao longo do passeio por onde descem as ruas para fora da cidade. Às escondidas dos olhares, sorrindo, relembrou uma sua ideia. Transformar toda aquela cidade numa espécie de Veneza com a praça como um amplo lago e aquelas ruas à sua esquerda, a Demão Baralho, a da Moela, a do Raio do mundo, como longas quedas d’água ou rápidos até lá ao fundo. Mas isso nunca iria acontecer, por isso nem abrandou o passo e, mais rápido agora, cortou à esquerda, desceu e entrou no restaurante A Cabana, o seu lugar de eleição. Deu as boas noites ao dono e a um dos empregados e sentou-se ao balcão, como era seu costume, lá ao fundo perto da cozinha e da televisão onde costumavam passar os jogos de futebol. Pediu uma meia dose de vitela em molho de tomate, acompanhada de arroz branco e batata frita (que lhe lembrava sempre o sabor das refeições que fazia, quando miúdo, em casa da sua mãe) e uma taça de tinto, que em três golos se esvaziou, tendo, por isso, de pedir outro enquanto esperava.
Foi, porventura, neste restaurante que tudo começou a mudar, a dar uma pequena reviravolta. Uma imperceptível viragem de cento e oitenta graus, que Benjamim Machado não se deu conta senão um dia mais tarde. Enquanto ia dando garfadas na sua refeição e goles no seu copo de vinho, o balcão ia se enchendo de pessoas, de todo desconhecidas dele, e nenhuma se sentava a seu lado. Isso também não o incomodava por aí além, estava de facto habituado ao isolamento e ao silêncio, ao pouco contacto para além dos seus gatos. Ele não era muito conversador, mas a sua inércia nos diálogos, que uma ou outra vez se iniciavam com ele todos os dias nos cafés, nos mercados, nas várias lojas, também nunca lhe pediam um enorme esforço de troca de palavras, bastava-lhe ouvir. Residia aí a virtude de Benjamim Machado. Ele era um muito bom auditor alheio, um confessor das tristezas e dificuldades do dia-a-dia de vendedores e lojistas, dos pais e mães de famílias partidas por dentro, dos homens e mulheres incapazes da entrega pela entrega.
A verdade é que Benjamim Machado tinha saído de sua casa pela primeira vez para procurar exactamente o contrário. Benjamim queria o contacto, as conversas que desviariam do seu pensamento a sua incapacidade finalmente descoberta, de não poder ser o escritor e poeta que sempre desejou vir a ser. O banco que o separava não o incomodou e tinha em seu favor um copo bebido a mais que os restantes. Sem se virar para um interlocutor em particular proferiu em voz alta uma ou outra frase, um isco, a ver se alguém cairia na sua arola. Mas tudo o que conseguiu foi um desdém completo de toda a gente que se encontrava em alta vozearia, nem uma alma o escutou ou, se o ouviu, preferiu deixar para si a resposta que Benjamim tanto queria ver presa na sua rede. Preferia que se tivesse criado aquele inoportuno silêncio, aquele isolamento de palavras seguido de olhares para aquele que provocou o calar das vozes. Mas não, nada disso, ninguém lhe mordeu o isco, ninguém lhe respondeu, ninguém, nem mesmo o empregado atrás do balcão se aproximou numa tentativa de esclarecer se lhe foi pedido mais alguma coisa ou não.
Pensou Benjamim Machado que quem cala consente, que de certeza a sua frase chocou com alguém e que essa pessoa apenas determinou que a um bêbado não se responde, não se dá trela, e o que é certo é que esse silêncio de resposta consentia o levar avante mais copos bebidos e disparatadas frases disparadas para o ar. E das duas escolheu uma hipótese, pediu mais um e outro copo de vinho, pediu que enquanto vissem o seu copo vazio o enchessem e assim foi, sem qualquer necessidade de mais troca de palavras, de contacto.
“Trago vestido o fato do anónimo que nunca quis ser e que me serve na perfeição, ninguém me vê, ninguém me ouve”, pensava Benjamim Machado de cabeça pendida no prato à sua frente. Mas eis que, quando levantou a sua cabeça para o copo que lhe fugia, se lhe depara o seu reflexo no espelho corrido na parede atrás do balcão e de todos os seus outros anónimos companheiros. Tinha-se feito aquele silêncio que ele tanto quis quando antes disse alto a sua frase de isco, mas ele não tinha dito nada agora que causasse esse efeito. Ele sabia que não tinha dito nada, ou teria pensado em voz alta? Naquele momento já não estava certo de nada, mas todas aquelas caras estavam no reflexo viradas para ele e no entanto Benjamim continuava a ouvir muito, muito ao longe, por trás de muitas camadas de panos, as conversas que, sabia, não lhe eram dirigidas. Desviou o seu rosto do reflexo e procurou à sua esquerda a verdade daquele acontecimento. Estava enganado. Tudo corria como antes, o empregado corria de um lado para o outro trazendo e retirando pratos de cima do balcão, casais, amigos, conhecidos e famílias conversavam, brincavam entre si, comiam e bebiam sem repararem em Benjamim Machado. “Mas então o que foi isto? Juntaram-se todos para gozar comigo? Isto é alguma brincadeira? Se é, é de muito mau gosto”. Levou o copo aos lábios e voltou a olhar para o espelho à sua frente. E lá estavam todos, uma vez mais, a olharem para ele. Não era nenhuma brincadeira, eles estavam de facto a olhar para Benjamim Machado, só que não era um olhar inocente nem um olhar que ocultasse uma qualquer acusação. Também não pesava sobre aqueles olhares qualquer desdém, qualquer orgulho, tristeza, pena, não. Era outra coisa que Benjamim Machado nunca tinha sentido de um par de olhos para os seus, uma coisa que ele não conseguia bem perceber porque nunca tinha feito nada para que lhe olhassem daquela maneira. Até que lhe veio à mente que aquilo, aquele olhar, até parecia… até parecia “que me admiram, até parece que me admiram, mais ainda do que muitos pais em relação aos seus filhos, eu… eu vejo… eu vejo que me admiram e ao mesmo tempo como que me invejam, mas eu não passo de um anónimo, um ninguém como eles – Como vocês”, saiu-lhe por fim da sua boca virando-se para os outros. Mas, uma vez mais, nada, ninguém olhava, ninguém parou para o ouvir e riu-se deitando goela abaixo o copo acabado de ser enchido.
Não resistiu àqueles olhares e retornou ao espelho, aos olhos que o admiravam, que já o reverenciavam e cumprimentavam com pequenos acenos de cabeça. Todavia, desta vez, uma coisa mais se acrescentou ao quadro. Uma mulher. No banco ao seu lado encontrava-se sentada uma mulher debruçada sobre o balcão, cotovelo apoiado levantando ao alto um copo de vinho. Mas, ao contrário dos outros, ela variava o seu olhar entre o dele e o dos outros, como Benjamim Machado fazia. “Fantasia por fantasia, ao menos tenho alguém ao meu lado, do meu lado”, disse Benjamim.
“E porque me tomas por fantasia, não estou aqui ao teu lado?”
Benjamim Machado não conteve uma gargalhada, “e finalmente começam a falar comigo”.
“E porque não falaria contigo. Eu não conheço ninguém aqui, nem eu a ti, nem tu a mim. Pensei apenas que seria simpático da minha parte meter conversa contigo já que estavas aqui sozinho, como eu, e toda a gente acompanhada”.
“Se calhar bebi mesmo mais do que a minha parte. Já tenho um reflexo que é capaz de argumentar a sua própria realidade”.
“Continuas ainda a pensar que sou apenas uma fantasia. Bom, como queiras, vou entrar no teu jogo…”.
“Não, desculpa, eu é que vou entrar no teu jogo porque não passas realmente de uma ilusão dos copos que já bebi. Diz-me lá, vá, o que queres de mim?”.
“Eu não quero nada de ti. Isso pergunto-te eu: O que é que tu queres de mim?”.
“O que eu quero de ti, não sei, o que tens para me oferecer?”.
“O que tu quiseres.”.
“O que eu quiser…”.
“Sim, o que tu quiseres”.
“Assim, do nada, sentas-te aqui e dizes-me que me dás o que eu quiser?”
“Para além de bêbado também estás a ficar surdo?”
“Não, não estou surdo, ouvi-te bem. Mas… esquece, eu não quero nada e ninguém me pode ajudar. Vá, chô, vai-te embora, tu e mais todos vocês, vão-se embora todos, vá, chô. E quero a conta se faz favor”.
Benjamim Machado virou-se para o lado, começou a enrolar um cigarro e a beber o seu copo. A mulher não se incomodou com aquela desconsideração. Inclinou-se mais sobre ele, posou o copo sobre o balcão, pôs um braço à volta do banco de Benjamim Machado, apoiando a sua mão nele, e a outra na perna de Benjamim. Muito baixinho foi-lhe segredando ao ouvido e Benjamim Machado fechou os olhos.
“Está bem, eu vou-me embora, mas antes deixa-me que te diga umas coisas. Eu sei o que tu queres, o que sempre quiseste. Também sei que te envergonhas com isso. Sei o que fazes todos os dias. Conheço bem o teu desejo, muitas vezes mo pediram e eu estive do lado de quem mo pediu. Por fim, sei que és só, que vives só. É por essa razão que te vou conceder o desejo, mesmo que não acredites no que te estou a dizer, concedo-to. Tê-lo-ás, meu querido, porque me vais amar como nunca amaste ninguém. Mas como me mandaste embora eu vou e deixo-te este desejo”.
A mulher deu-lhe um beijo na cara. Benjamim Machado estremeceu de surpresa e voltou-se rapidamente, mas já não se encontrava ninguém sentado ao seu lado. Tudo tinha voltado à mesma. Benjamim procurou com o olhar a sala, até que lá ao fundo viu a porta da rua fechar-se e como ninguém entrou só podia ter sido ela a sair. Levantou-se rapidamente, pagou e correu no encalço daquela misteriosa mulher. Quando abriu a porta, lá estava ela no cimo da rua. “Espera, espera por mim” e correu rua acima. A Praça do Lagrido encontrava-se cheia de gente, mas de todas as mulheres que lá se achavam nenhuma era ela.

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