terça-feira, 18 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

V

No dia seguinte, enquanto ele dormia, parti pela primeira vez para a cidade, coisa que não fazia desde que minha mãe morreu faz hoje dez anos. Precisava de arranjar alguns remédios, não fosse o meu paciente ficar ainda pior do que já esteve. Acordei como minha mãe costumava acordar, quando nenhum galo celebrava a aurora. Mas que carnificina de noite foi aquela que passou. O meu estendal caído no chão, a minha pobre cerejeira rachada a meio por um relâmpago até à raiz, os cântaros com água a rasar pela boca, a horta num estado lastimoso, pássaros caídos aos montões à volta da casa apanhados pelos ventos traiçoeiros, as galinhas sem ovos devido ao susto que tiveram, um verdadeiro caos. Pelos vistos teria de trazer mais do que remédios. E tinha de ser célere, não fosse ele acordar.Segui pela estrada que percorria toda a costa da falésia. Era a mais rápida até à cidade, mas infelizmente a menos segura e depois da noite de ontem teria de ser mansa nas minhas passadas, não fosse um qualquer penhasco apanhar-me desprevenida, ruir e atirar-me ribanceira abaixo. Depois, o que seria do meu adorado náufrago, enfermo e moribundo, sem saber onde está, só numa terra estranha? Sim porque ele era estrangeiro, falava aquele castelhano de lá do atlântico de boca cheia, mais fácil de entender do que o outro, mas também dizia algumas palavras em francês. Dou graças à minha mãe por me ter ensinado a ler e a escrever, bem como a falar as línguas vizinhas pelos livros da biblioteca de meu pai, o que me ajudou a destrinçar aquela verborreia do delírio.
Que estrada mais desgraçada se me deparou na vista. Já não era só a miséria que morava naquelas redondezas, pois trouxe para sua vizinha a própria morte mais a sua foice. Levei a mão ao peito. Deu-me cá um aperto toda essa mortandade penhascos abaixo e na berma. Mas não podia ficar quieta. Deus sabe o que fez. Tinha de seguir caminho até à cidade o quanto antes, pois não tardava a abertura do mercado e minha mãe sempre me disse que a melhor altura é estar lá no momento em que as portas se abrem, porque então temos à nossa escolha os melhores vegetais, o melhor peixe, a melhor carne. E o meu náufrago merece o que de melhor há. Mas Deus não me avisou da visão que então tive na Ponta do Salgueiro, lugar que minha mãe me trazia quando era criança para ver na baía em baixo os pescadores de ostras.
Centenas de corpos de homens, mulheres, crianças, das mais pequenas ainda de mama aos adolescentes de buço, velhos e velhas cobertos de algas, de um azul mortiço, estendidos ao longo do areal entre destroços de uma embarcação, como se estivessem a ser salgados como se faz ao melhor bacalhau. E não eram apenas pessoas que ali estavam a secar, mas peixes de vários tamanhos e feitios dos quais nunca tinha visto, golfinhos, leviatãs, atuns, sargos, carapaus e sardinhas e até seis monstruosos carniceiros tubarões. Quando vi aqueles monstros duvidei da imaginação dos delírios, mas de seguida afugentei tais pensamentos dizendo para mim que, possivelmente, o meu náufrago teria passado por ali quando procurava abrigo e vivalma que o socorresse. Também eu teria pesadelos com tamanha tristeza. Não podia demorar mais tempo. Virei costas e pelo caminho até à cidade rezei uma prece por aquelas almas perdidas e inocentes.
Quando cheguei à cidade soou o primeiro galo e as portas do mercado ainda estavam encerradas, embora já muito alvoroço se ouvia do seu interior. As muitas vozes abafadas queixavam-se da tormenta que tinha sido estes últimos dias, mas principalmente a noite anterior que foi das mais violentas, senão a mais violentíssima, que alguma havia história. Aliás, diziam algumas, muito semelhante em mortandade à onda gigante de mil setecentos e cinquenta e cinco, segundo se recordavam dos ditos de seus idos avós. Logo se abriu a porta e me despachei a aviar o que necessitava, sem mais delongas. De seguida, peguei em mim mesma, mais os víveres, e fui-me a uma botica procurar o que de melhor havia para as maleitas dos oceânos nos pulmões. À saída, na esquina sinistra daquela rua, reparei que muitas pessoas se ajuntavam e guiei-me pela curiosidade. Essa ruela, afinal, era um beco onde um livreiro dependurava as últimas novidades ao lado de romanças e líricas, muitas delas levianas, outras fantasiosas, outras ainda com palavras quase divinas de tanta beleza como as que meu náufrago me murmurou. Nesses cordéis encontrava-se de tudo, realmente, desde livros de cavalaria a relações e notícias de monstros e criminosas, de poemas dos mais belos aos que escaparam à real mesa censória. Mas muito me chamou a atenção umas quantas folhas de um estrangeiro, que ninguém conhecia, dado desaparecido fazia três anos e cujo pequeno libelo se chamava simplesmente Poesias. Como já tinha lido e relido uma centena de vezes as obras que meu pai me deixara e me sobravam umas quantas moedas, decidi-me por levar esse mesmo, pois muito me atraiu o que lá se encontrava em epígrafe: “Substituo a melancolia pela coragem, a dúvida pela certeza, o desespero pela esperança, a maldade pelo bem, as queixas pelo dever, o cepticismo pela fé, os sofismas pela frieza da calma e o orgulho pela modéstia”.
Depois de pago o livro, segui caminho para casa ao encontro do meu adorado náufrago, para lhe preparar uma refeição reconfortante e para o pôr como novo.

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